São Paulo, quinta-feira, 3 de novembro de 1994
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Tente se divertir com o novo niilismo

DAVID DREW ZINGG
EM SÃO PAULO

Obs. do editor:
Não leia esta coluna.
Ela não tem sentido.
A vida não tem sentido.
Estamos prestes a estudar o sentido da vida num livro que trata da falta de sentido. O livro parte da premissa de que nada pode ser conhecido e que todas as interpretações são falsas.
O Velho Filósofo Dave tem sentimentos mistos sobre o resultado final desse livro. Se a teoria for verdadeira, pode significar que você está liberado do seu dever semanal de ler colunas de opinião, como esta.
Se isso for verdade, tio Dave, Antonio Callado, Arnaldo Jabor e José Simão talvez se vejam obrigados a encontrar outros meios de ganhar a vida.
Tipo ficarem postados em esquinas, enquanto executivos voltam para casa, cansados, no início da noite.
O livro em questão é "The Dark Side: Thoughts on the Futility of Life from the Ancient Greeks to the Present" (O Lado Sombrio: Reflexões sobre a Futilidade da Vida, dos Gregos Antigos até o Presente) e é editado pela Citadel Press. Na Gringolândia, custa US$ 12,95.
O livro trata da "(anti)filosofia", ou niilismo. A palavra vem do latim "nihil", que significa "nada", e é definida como "o repúdio radical do valor e do significado".
O núcleo intelectual do livro é um compêndio que amortece a alma, mas é morbidamente fascinante, de mil citações de pensadores, desde 800 a.C. até o presente.
Esses niilistas afirmadores do "não" se estendem sobre como tudo é excremento, nada importa e tudo está perdido de qualquer maneira, portanto quem é que se importa com isso?
O livro começa com uma citação encorajadora da "Ilíada", de Homero: "De todos os seres que respiram e se arrastam sobre a Terra, nenhum é mais infeliz do que o homem."
As palavras animadoras seguintes vêm do "Livro de Jó", do Velho Testamento: "O homem nascido da mulher vive poucos dias, e repletos de sofrimento."
O reverenciado Santo Agostinho contribui com: "Se os bebês são inocentes, não é porque lhes falte o desejo de fazerem o mal, mas por lhes faltar a força."
A seguir, o rei Lear, de Shakespeare, se lamenta: "Como moscas para garotos travessos somos nós para os deuses: eles nos matam para sua diversão."
Voltamos a Petrônio para ouvir a resposta: "Somos mais insignificantes do que moscas."
Se tudo nada significa, a não ser nada, qual o sentido de escrever um livro sobre isso?
O autor diz que o fato de escrever o livro o ajudou a manter sua mente afastada do vazio de sua vida cotidiana e banal.
O pior, diz ele, é que o vazio está se tornando mais vazio a cada momento que passa. O niilismo se aprofundou no decorrer da história humana, diz ele, e hoje vivemos "provavelmente a era mais pessimista da história ocidental".
Mas o autor, um certo professor Alan R. Pratt, tem um sistema de pensamento ligeiramente animador para assegurar a sobrevivência contemporânea. É a forma mais recente do niilismo –uma escola de pensamento chamada de "antifoundationalism".
Acho que você vai gostar desta, Joãozinho –é uma filosofia que não está muito distante daquela pela qual se regem as pessoas de verdade, aqui em Sambalândia.
"Ela promove uma espécie de 'niilismo bem-humorado' ", diz o professor. "Trata-se de um pragmatismo de alto nível, que procura normalizar nossos sentimentos de que não existe nada, eliminando as associações com o cansaço de tudo e a falta de sentido."
O professor exemplifica o "antifoundationalism": "Claro, nada tem sentido. Então, o que vamos ter para o jantar?"
Ou, para nós, aqui: "Quanto tempo falta para o Carnaval?"
Veja a coisa sob este prisma: se não podemos nos divertir com o niilismo, de que adiante viver? As frases citadas pelo livro recém-lançado "The Dark Side" foram ditas anos, até séculos atrás. Mas são tão atuais e relevantes que poderiam ter sido ditas hoje –só que por pessoas diferentes:
Sem dinheiro, a honra não passa de doença.
Original: o filósofo francês Jean Racine.
Hoje: P.C. Farias.
Verdadeiramente, constatei que mesmo o maior dos homens é humano demais.
Original: Friedrich Nietzche.
Hoje: Madonna.
É da natureza dos mortais chutarem um homem caído.
Original: Ésquilo.
Hoje: generais sérvios bósnios.
Tudo tem seu preço.
Original: Claudiano.
Hoje: jogadores de futebol.
Se a infelicidade gosta de ter companhia, ela já tem companhia suficiente.
Original: Henry David Thoreau.
Hoje: torcedores de times de futebol.
Somos todos suficientemente fortes para suportarmos os infortúnios que afligem os outros.
Original: Duc de la Rochefoucauld.
Hoje: Tonya Harding.
Talvez isto seja muito barulho por nada.
Original: Cícero.
Hoje: CPIs sobre escândalos no Congresso.
A vida não passa de um fio de navalha; cedo ou tarde, as pessoas escorregam e se cortam.
Original: "Streets of Laredo".
Hoje: Lorena Bobbitt.
Ai de mim.
Original: Tácito.
Hoje: John Wayne Bobbitt.
O moral é aquilo sobre o qual você se sente bem depois de fazer, e o imoral é o que você se sente mal depois de fazer.
Original: Ernest Hemingway.
Hoje: Mike Tyson.
O homem é o único erro da natureza.
Original: Samuel Butler.
Hoje: Xuxa.
Na tristeza darás à luz teus filhos.
Original: "Livro do Gênesis".
Hoje: os pais mortos do alegado parricida gaúcho.
Jamais estamos satisfeitos com o que somos.
Original: o filósofo romano Terêncio.
Hoje: clientes de Ivo Pitanguy.
Nada mais pestilento do que o conhecimento poder advir aos homens; é essa mesma pestilência que leva a humanidade à ruína.
Original: Agrippa von Netteshelm.
Hoje: Dan Quayle.

Tradução de Clara Allain

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