São Paulo, sábado, 5 de novembro de 1994
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Como se forma um ministério

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Tertuliano Fonseca tinha um amigo que acreditava em tudo o que ele dizia. Bem verdade que tudo o que Tertuliano dizia era sempre em louvor do amigo, do qual Tertuliano se tornou mais amigo quando este foi eleito vereador e mais tarde prefeito de Nova Atenas –progressista burgo do setentrião brasileiro, famoso pela produção de babaçu e derivados, principalmente derivados.
Um desses derivados eram os filósofos pós e pré-socráticos que Nova Atenas fornecia desde tempos imemoriais à cultura pátria.
O amigo de Tertuliano, antes de ser vereador e prefeito, notabilizara-se pela filosofia, tendo publicado monumental tese sobre "os desvios de Thales de Mileto em face da teoria molecular de Artaxerxes". Foi, de resto, a repercussão de tal tese que valeu ao amigo de Tertuliano a eleição no primeiro turno.
Todos em Nova Atenas imaginaram que Tertuliano "seria o que quisesse" no novo governo. Uns diziam que ele seria porta-voz, outros, que seria secretário da Fazenda, ainda outros garantiam que sua seria a pasta da Justiça. A imprensa, mais bem informada, anunciava que Tertuliano iria para a Agricultura, embora aceitasse a hipótese de Tertuliano ir para a Cultura ou a chefia de polícia. Para qualquer dessas funções Tertuliano era adrede preparado, mas ele recusou todas as indicações, dizendo que preferia ser apenas o que sempre fora: amigo do prefeito.
Mas era impossível. Vagou a presidência da Academia Pré-Socrática de Nova Atenas, que então vivia uma fase de turbulência provocada pelo debate que já se arrastava há tempos: a substância antecede a essência ou procede dos acidentes?
Tertuliano Fonseca era o único, em toda Nova Atenas, que não tinha opinião firmada sobre o assunto, logo, só a ele o prefeito poderia acorrer, a fim de não prejudicar a coalizão que o elegera.
Não era muito trabalho: duas vezes por ano, Tertuliano teria de assinar uma ata em três vias. Num rasgo de honestidade, ele declarou que nada entendia daquilo, mas o prefeito o tranquilizou: "Aceite o cargo e deixe o resto por conta das forças vivas da nacionalidade".

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