São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Receita Federal não é um navio corsário

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tem provocado muitas reações a minha divergência pública, noticiada pelos principais jornais, com o atual secretário da Receita Federal, principalmente em face da sua conduta no processo de exoneração da delegada de São Paulo, drª Rosa Soares Defensor, e o linchamento moral, público e oficial que este senhor possibilitou ocorrer com relação ao coordenador de fiscalização, Ricardo Pinheiro; ao delegado de julgamento do Rio de Janeiro, Luís Henrique Arruda; e ao delegado do Centro-Sul da cidade do Rio de Janeiro, Youmans Duque Estrada.
Uma fita, resultado de gravações feitas em repartição pública e na casa de um funcionário, com trechos fragmentados de conversas, impossibilitando a visão do contexto, obtida clandestinamente e ilegalmente e entregue anonimamente, foi divulgada pela administração da Receita Federal, condenando antecipadamente as vítimas.
Não se investigou a origem de tais gravações, que constituem crime. Em realidade, foram beneficiados os que anonimamente desejam desestabilizar três funcionários destemidos, que gozavam da mais alta reputação perante os colegas. Triste papel da cúpula da Secretaria da Receita Federal, transformada em porta-voz de espiões e executora de julgamento sumário, sem direito de defesa.
Note-se que ao fazer estas observações não estou defendendo os três funcionários mas, sim, luto para que seja observada garantia constitucional dada a sonegadores e até mesmo aos assassinos: o direito de defesa. Antes, o dr. Sálvio tivesse a mesma prudência que tem ao punir os sonegadores, quando condena servidores.
Entendo que a Secretaria da Receita Federal constitui uma instituição fundamental para a implementação de uma sociedade verdadeiramente democrática no Brasil. Não só pelo seu papel de garantir a arrecadação do governo, para viabilizar com tais recursos seu programa de ação, mas também para conferir maior grau de solidariedade na sustentação financeira do poder público, ao ter condições efetivas de fazer observar a lei tributária.
Considero que o seu compromisso é o de mudar o atual quadro de ineficácia da lei tributária federal, na qual as pessoas que realmente pagam impostos e suportam a carga tributária são as que trabalham. Os ricos, detentores do capital, dotados de alta capacidade contributiva, como regra geral, pagam pouco ou não pagam imposto.
O esforço que a Receita Federal tem de realizar é o de fazer observar a lei tributária na sua plenitude, de sorte que todos paguem o imposto devido, sem exceções.
Valores e metas como neutralidade, imunidade a influência política, objetividade, imparcialidade, respeito à lei, lealdade, integridade, honestidade, apartidarismo, competência técnica, bom atendimento ao contribuinte e irrestrita luta contra a corrupção e evasão são características essenciais da instituição, a serem praticadas diariamente por seus membros.
Seguindo tais parâmetros, a Receita Federal certamente adquirirá e manterá o respeito dos contribuintes, que passarão a cumprir espontaneamente as suas obrigações tributárias.
A Receita Federal não é órgão destinado a praticar política econômica ou mesmo política tributária. A sua missão é obrar pelo cumprimento da lei tributária vigente. A sua pauta é o direito e zelar pela sua observância. Por todos.
Daí ter sugerido ao presidente eleito, Fernando Henrique, durante a fase de campanha, que a Receita Federal fosse um órgão diretamente vinculado à Presidência da República, para lhe dar maior autonomia e relevância, como instrumento de combate efetivo e eficaz à sonegação e à evasão, fenômenos tradicionais que devem ser proscritos ou pelo menos reduzidos à insignificância.
O atual secretário da Receita Federal foi pessoa de minha confiança. Era meu substituto. A sua condução à titularidade infelizmente teve a minha participação. O desenlace público pode causar perplexidade aos que tenham poucas informações sobre as razões que o motivaram.
A prudência aconselha: roupa suja se lava em casa. Aliás, esta tem sido a prática tradicional das classes dirigentes brasileiras. Divergências, mesmo as substanciais, devem ser resolvidas no silêncio, acolchoamento e discrição dos gabinetes. Evitem-se os ruídos desagradáveis. Mantenha-se a aparência de normalidade, mesmo diante das maiores tormentas e dilúvios.
A relevância da missão que a Receita Federal tem a desempenhar na trajetória do país impediu e impede-me a adoção de procedimentos de conveniência suavizadores.
A marcha de retrocesso está em curso. Não há apenas tentativa de retorno ao passado. O passado já assumiu o posto do presente. O jogo de influências espúrias, de acordos de gabinete, a proteção desavergonhada, ilegal e sobretudo imoral voltam a tomar posições de mando.
Os resquícios do autoritarismo e da influência política, ainda sobreviventes em São Paulo, haviam sido praticamente banidos, remanesciam tão-somente umas poucas figuras de adorno. O que havia sido recolhido agora ressurge, embora, espera-se, com pouco tempo para atuar. Não se pode permitir que a Receita Federal se transforme em navio corsário para saques de piratas, interessados em se beneficiar em detrimento do bem público.
É de suma importância que surja uma reação para que o dispositivo montado resulte em aborto necessário para evitar a ressurreição de monstrengo espúrio.
Afortunadamente, poucos dias estão reservados à atual administração. Menos de dois meses. Mas muitas fiscalizações importantes estão para serem concluídas: de bancos, financeiras, entidades de previdência privada, Federação Paulista de Futebol, ricos paulistas dos Jardins e esquemas do governo Collor.
Que o Natal próximo não tenha a atual administração como Papai Noel, a dar presentes indevidos em negociação espúria do interesse público. Muito menos que as festas de fim-de-ano sejam reprises das realizadas pelos sonegadores, com a exoneração da drª Rosa Defensor e de seu chefe de fiscalização, Satachi Sanda, publicadas na última sexta-feira.
A velhice tem suas compensações, muitas vezes alegrias de avô. Pena que produza alguma degenerescência. A física pode ser amenizada com cirurgias e vitaminas. A moral dificulta a caminhada tranquila pelas ruas, atormenta o sono e só se soluciona com a amputação do membro putrefato. Eis aí um recado aos poderosos de hoje.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília, advogado e ex-secretário da Receita Federal.

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