São Paulo, segunda-feira, 14 de novembro de 1994
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Lanterna na popa

Carlos Heitor Cony
RIO DE JANEIRO – Perguntei a Otto Maria Carpeaux, faz tempo, o que seria "Fausto" se Goethe tivesse publicado, na mesma época e num mesmo volume, a obra completa, ou seja, o "Fausto 1" e o "Fausto 2". Carpeaux sempre me considerou um diabo mal acabado, sentiu a provocação mas se saiu como sempre: "Teríamos um grande livro com uma primeira parte feita por um gênio".
Lembrei dessa resposta diversas vezes ao longo das mil e tantas páginas de "Lanterna na Popa", de Roberto Campos. No caso de Goethe, ficaria fácil a separação entre a obra-prima e o grande livro, o próprio autor o dividiu em dois, iniciando talvez sem saber o costume americano de fazer "Rambo" 1, 2, 3.
Roberto partiu de um projeto modesto, de acordo com a sua personalidade disciplinada pelo seminário, pela escolástica, pela carreira funcional no Itamarati e até mesmo pela economia: priorizou a ordem cronológica do fatos. Como um embaixador em véspera de deixar o cargo, relatou até praticamente o último dia o tempo de sua missão.
Como está, o livro resulta em importante testemunho da vida nacional, nela incluindo os principais acidentes internacionais. Tendo como eixo a economia e a política, pode-se dizer que ele biografou o século 20, que para Campos começou em 1917, ano em que nasceu. E acabou com a queda do Muro de Berlim, que ele previu (pelo menos entre nós), com aquela voz chata e profética dos que clamam no deserto.
Impossível resenhar em 33 linhas um calhamaço de 1.417 páginas. Espaço pequeno que dá apenas para fazer uma restrição que pode valer como elogio talvez exagerado: editado de outra forma, com o autor embaralhando assuntos, fatos, datas, pessoas, idéias e contra-idéias (se contra-idéias existem realmente), se ele não tivesse pudor de ser o humanista que "malgré lui" sempre foi, teríamos um clássico mais importante do que "Minha Formação", de Joaquim Nabuco. Um livro que, aqui no Brasil, poderíamos colocar ao lado de Montaigne e de algum Chateaubriand. Num canto solitário, onde o autor se sentiria mais confortável.

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