São Paulo, quarta-feira, 23 de novembro de 1994
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Os tolerantes

JANIO DE FREITAS
OS TOLERANTES

A decisão militar de tolerar nas favelas o tráfico de varejo, de "nível baixo na hierarquia do narcotráfico", conduz direto a uma conclusão: neste caso, o que os militares podem fazer de melhor é voltar aos seus quartéis, porque os problemas que os fizeram sair às ruas originam-se todos, precisamente, do pequeno tráfico que o seu insucesso preferiu autorizar.
Nas favelas não há senão o tráfico de varejo, vendendo parte, e por certo não a maior, das drogas distribuídas pelos atacadistas. Mas foi o pequeno tráfico, com sua oferta de ganho melhor e menos árduo do que o oferecido pelo trabalho de salários mínimos, que levou às disputas pelos pontos de venda nas favelas. E daí à proliferação das armas (boa parte proveniente dos quartéis), às lutas de quadrilhas, ao domínio territorial com leis próprias, à extensão dos efeitos das "guerras" até ao asfalto.
O problema da violência no Rio não provém propriamente da droga. Tudo faz crer que o comércio carioca da droga não excede, proporcionalmente, o de muitas cidades brasileiras. A violência no Rio tornou-se maior pelas peculiaridades de parte do comércio, decorrentes de estar situada nas favelas e estas disseminadas no interior mesmo da cidade. E tais peculiaridades foram criadas pelo tráfico de varejo de repente transformado de algo a ser extinto, mesmo que para tanto exigindo a ação de militares, em algo declaradamente tolerável.
O espanto causado por esta comunicação do porta-voz dos militares, coronel da reserva Ivan Cardoso, levou-o a justificá-la como "até útil", porque pode permitir "aos militares infiltrados nas favelas" a obtenção de informações. Infiltração em favela, de soldados lá deixados, não é coisa em que se acredite. Com outros jornalistas, ouvi há tempos a narrativa de um velho policial sobre as providências de seu grupo, quando se tratava de entrar em favelas como Mangueira, Salgueiro e outras de mesma organização interna, para buscar e trazer mesmo um criminoso.
As sutilezas iam ao ponto de mandar roupas do grupo para a favela uma semana antes da incursão. No dia determinado, as roupas voltavam e o grupo entrava na favela vestindo-as: as roupas tinham adquirido o cheiro da favela. Sem isso, logo aos primeiros passos os cachorros vagabundos denunciariam os policiais aos "olheiros".
A tolerância com o pequeno tráfico e os infiltrados do porta-voz têm tudo das desculpas inábeis. No caso, para a absoluta ineficácia dos procedimentos que os militares estão adotando, demonstrada pela comprovação jornalística de que tudo voltou ao habitual, nas favelas onde estiveram, tão logo as deixaram.
As evidências avolumam-se todas no mesmo sentido: os militares precipitaram-se, mas não sabem o que fazer.

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