São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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Exageros à parte

JANIO DE FREITAS
EXAGEROS À PARTE

Embora muito poucos tenham se recusado ao oba-oba orquestrado e preferido alertar para os excessos incipientes nas ações militares em favelas, o comando da operação mostrou-se sensível às preocupações e adotou providências positivas. Crianças não mais serão revistadas, como se fossem marginais, sob a intimidação de armas. Defensores públicos foram admitidos em quartéis, para proteger os direitos dos detidos sob averiguação. Ouvidores militares começam a acompanhar as ações, para registrar eventuais queixas (improváveis, pelo temor) de tratamento impróprio.
Mas também é verdade que a operação só está se salvando pelos artifícios, com frequência levados até a ficção mais desabrida, com que certos meios de comunicação protegem e engrandecem a operação, contra as evidências. Já na primeira incursão militar em favelas, uma especialista em ficção do jornal das oito dizia que "só com esta primeira ação o tráfico de drogas caiu 30% no Rio". A menos que ela tivesse insuspeitada intimidade com a contabilidade do narcotráfico, não poderia afirmar a redução em um só grama, porque nada indicava então, nem indica até hoje, que tenha havido sequer isso.
"General Senna lidera 2 mil soldados no combate ao tráfico no morro mais violento do Rio": "Exército ocupa o morro do Borel". Bem no alto de uma primeira página, o sóbrio general e a incursão tranquila em uma favela eram elevados, ontem, ao general Patton e à batalha da Normandia. Tanta eloquência soaria até irônica, não exigisse a ironia um certo requinte. O Borel revelou-se mesmo especialmente excitante: "Exército liberta o Borel", "General Senna escapa de bala perdida" (o general usava um celular da Telerj, priiimm, tronc, friiimm, quando ouviu um silvo).
O saldo real continua sendo zero. Há algo de fundamentalmente errado na operação. E não é só o exagero da dimensão bélica, com canhões de tanques apontados para favelas, como se o Exército fosse capaz de responder com canhonaços sobre a população à eventual resistência de um grupo de marginais. As incursões demonstraram, desde o seu início, que não obtêm mais do que um interregno no comércio evidente de drogas. Armas e chefes marginais, que são o objetivo da operação, mantêm-se preservados. Nem o domínio das comunidades pelos marginais sujeita-se ao intervalo: em cada favela, todos sabem quem ditará as leis e as retaliações tão logo acabe a incursão militar.
As ações podem ser muito mais simples e muito eficazes. Mas, para isso, é preciso que a operação seja toda repensada. Se o aparato das armas fizesse os efeitos que a operação está imaginando, as quadrilhas não fariam entre si as guerras mortíferas que fazem e que foram a razão mesma da operação com presença militar.

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