São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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'Llosa é um escritor clássico '

OTÁVIO DIAS
COORDENADOR DE ARTIGOS E EVENTOS

Mario Vargas Llosa tem admiradores na Bahia: Jorge Amado, é claro, mas também as mulheres do sertão.
Conta Amado, amigo e colega de ofício, que o escritor peruano fez "um sucesso terrível" durante viagem de preparação para o livro A Guerra do Fim do Mundo, sobre a guerra de Canudos.
As mulheres ficaram doidas pelo 'Argentino', como ficou conhecido no sertão, diz Amado, que ajudou a organizar a expedição. O livro, para Amado, prova a versatilidade de Vargas Llosa.
Eu só tenho dois temas: o cacau e Salvador. Mario não se sente limitado pelos temas locais de seu país, afirma.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista com Jorge Amado, concedida à Folha, por telefone, de sua casa na Bahia.

GRACILIANO
Mario Vargas Llosa é um escritor clássico. Peruano, trabalha a língua espanhola de maneira pura. Talvez não seja essa a palavra, pois pode dar a impressão de que seu espanhol é como o da Espanha. Sua língua é o espanhol do Peru, mas sua gramática me parece quase clássica.
É como a língua de Graciliano Ramos. É brasileira, no sentido de que em português de Portugal não se poderia escrever tal como está em sua obra, assim como há uma condição tropical e nordestina. No entanto, na estrutura, é uma língua clássica portuguesa.

CANUDOS
Mario é um escritor que não se sente limitado pelos temas locais de seu país. Escreveu, por exemplo, o livro A Guerra do Fim do Mundo, sobre Canudos.
No Brasil, muitos me acusam de ser um escritor limitado e repetitivo. Estou inteiramente de acordo. Só tenho dois temas. Um rural, o cacau; outro citadino, Salvador. São temas que conheço de forma vivida. Não os conheço de fora para dentro, mas de dentro para fora, é algo íntimo.
Quando Mario me disse que escreveria um romance sobre Canudos –estava doido por Os Sertões, de Euclides da Cunha–, botei a mão na cabeça e pensei: Vai ser um desastre. Não foi.
Poderia dizer que Vargas Llosa é mais universal, mas não é isso. Acho que o escritor é tanto mais universal quanto mais for escritor de seu povo e de seu país. Mario não é mais universal que José Lins do Rego, por exemplo, mas tem amplitude maior de temas.

"O ARGENTINO"
Canudos é uma página de heroísmo de nossa história, mas não deu nenhum grande romance brasileiro. Assim como ninguém fez o romance do café.
Há a obra de José Lins sobre a cana-de-açúcar, eu próprio tratei do cacau. Há romances sobre o ciclo da borracha, mas não existe um grande livro sobre o café. Talvez porque os escritores paulistas fossem mais citadinos.
Foi preciso que viesse Vargas Llosa e escrevesse o romance sobre Canudos. Antes, Mario veio ao Brasil para uma reunião do Pen Clube Internacional, do qual era presidente, e me pediu que o ajudasse a organizar a viagem de pesquisa à Bahia.
Peguei o telefone e liguei para meio mundo, para o governador, o prefeito e um monte de amigos. Ao final, sua companheira, Patricia, me disse: Só faltou você arrumar mulher para o Mario. Para isso ele não precisa de ajuda, respondi.
Renato Ferraz, homem do sertão de Canudos, foi seu braço direito durante a viagem. Muito bonito, Mario fez um sucesso terrível. As mulheres ficaram doidas pelo Argentino, como ficou conhecido no sertão da Bahia.

PERTO DA EUROPA
Pela sua qualidade intelectual, Mario é o escritor latino-americano mais próximo da Europa. A ficção européia é mais um debate de idéias. A latino-americana é recriação da vida, no sentido de sangue.
Nisto temos certa unidade, os escritores latino-americanos. Com exceções, somos menos intelectuais e mais ligados à vida do povo.
Não diria que isso ocorre por sermos de países subdesenvolvidos, porque existe a grande geração norte-americana de Ernest Hemingway, William Faulkner, John dos Passos, muito ligada à vida do povo norte-americano.

POLÍTICA
Ainda não li "O Peixe na Água", mas tenho grande curiosidade por sua experiência política. Posso entendê-la mais facilmente do que muitos homens de esquerda porque hoje não tenho nenhuma paixão política.
Minha experiência é forte e dolorosa. Vivi um processo de reencontro comigo mesmo, saindo de posições stalinistas as mais radicais. Hoje penso pela minha cabeça, embora não inteiramente, porque só aos poucos a gente vai se libertando.
Acho que Mario quis servir ao povo dele e o fez honradamente, embora dentro de pontos de vista dos quais por vezes discordo. Foi uma experiência honesta, mas desastrosa. Seu povo preferiu um homem com discurso demagógico que acabou com a democracia política. Espero que a experiência se torne grande obra literária.

NOBEL
Gosto muito dele e agradeço a gentileza em relação à minha obra, mas quem vai ganhar o Prêmio Nobel é ele.
Isso é uma chateação. Às vezes, sobretudo aqui na Bahia, as pessoas vem me cobrar: "Como é que você não tem o Nobel?" Se me dessem o prêmio, eu ficaria contentíssimo, ainda mais com o dinheiro. Mas o que me faz desestimar um escritor é a correria em torno de prêmio.
A gente escreve, em primeiro lugar, porque não pode deixar de escrever. Meu prêmio é receber uma carta de uma mulher de Porto Rico que diz: "Tereza Batista mudou minha vida." Meu prêmio são meus leitores.
Se eu tivesse que dar o Nobel a um escritor de língua portuguesa, daria a Miguel Torga. É um camponês do Alentejo de 87 anos que resiste à própria morte. Além dele, tem José Saramago e João Cabral de Melo Neto.

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