São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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Os demônios culturais de Llosa

A fonte do método de escrita de Vargas Llosa é flaubertiana

MILTON HATOUM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos anos 70, talvez em 74, eu li um opúsculo intitulado "História Secreta de una Novela", editado pela Tusquets (Barcelona). O livrinho me havia sido indicado por Davi Arrigucci Jr. no intervalo de um curso de teoria literária na USP. A indicação respondia à curiosidade de um leitor interessado na arquitetura de um texto de ficção.
"História secreta" caiu como uma luva. É um breve e interessante depoimento sobre os motivos e os "demônios culturais e pessoais" que instigaram Vargas Llosa a escrever "A Casa Verde". De modo que o meu primeiro contato com a obra do autor foi um pequeno texto sobre um romance cujo cenário principal é a Amazônia. Na leitura do romance fiquei impressionado com a sua complexidade espaço-temporal e o lirismo presente em suas páginas.
Mas "A Casa Verde" não é apenas um romance sobre a Amazônia, pois aqui Vargas Llosa (como antes fizera Alejo Carpentier em "Los Pasos Perdidos") já se distanciara do regionalismo de alguns antecessores e escrevera uma obra de validade universal.
Além da complexidade da narrativa, impressionou-me o fato de ler um romance realista, dotado de todos os recursos que moldam esse tipo de discurso: o poder de persuasão que o texto passa, a busca do efeito da realidade, sem a intromissão de um narrador; uma obra literária concebida como um artifício que convence o leitor e o põe diante de um mundo inventado.
Na verdade, desde o início de sua carreira de escritor, Vargas Llosa vem respondendo com muita habilidade narrativa ao seguinte desafio: como inventar, a partir da perspectiva do romance realista, a realidade latino-americana, sem reproduzir os clichês da crônica jornalística, em recorrer à enfadonha descrição naturalista da vida política e social desta América?
A resposta a esse desafio encontra-se, evidentemente, em sua obra literária; mas esta é inseparável de suas reflexões sobre a arte de narrar. Em todos os seus textos críticos ele menciona os "demônios culturais", a fim de evocar os desejos, as obsessões e as preferências literárias de um escritor.
A famosa frase de Borges (cada escritor cria os seus precursores), pode ser aplicada a Vargas Llosa, que focou sua obra nas culturas erudita e popular, como se mirasse ao mesmo tempo os ícones da literatura e os "faits divers", os melodramas, os eventos mórbidos e as peripécias que povoam o cotidiano e a história de seu país.
Penso que algumas fontes literárias, interligadas, moldaram o projeto estético de Vargas Llosa. Uma delas é o vivo interesse do autor pela literatura de aventuras e o romance histórico. Basta lembrar o prólogo que ele escreveu para uma edição do "Tirant lo Blanc", de Joanot Marotorell, um clássico catalão do fim da Idade Média.
Nesse prólogo (e em outros textos como "História de um Deicidio" e "La verdad de las mentiras") ele reflete sobre a relação entre literatura e realidade; como ocorrem as aproximações, os contatos, os contrastes e as rupturas nessa relação sempre emblemática.
Os lances fantasiosos e o vôo da imaginação nos romances de cavalaria parecem contrariar a vocação realista. E embora exista nos romances de Vargas Llosa uma interação de sua vida com a história do Peru, ele parece dizer ao leitor que a verdade da história não é a da literatura.
Mas só contar uma história não basta para um leitor exigente. Por isso, ele lança mão de técnicas narrativas ousadas, que enriquecem a sua obra. Modos de narrar que Vargas Llosa e outros escritores contemporâneos assimilaram de Virginia Woolf, Faulkner, Joyce e Proust, cujas obras são marcadas por inovações da linguagem e da arquitetura do texto.
Ele usou alguns desses recursos em "Los Cachorros", novela narrada por muitas vozes, "mais cantada que contada", sobre um adolescente emasculado por um cachorro. Essa novela serviu de preâmbulo aos dois romances mais inventivos do autor: "A Casa Verde" e "Conversa na Catedral".
Um outro aspecto da obra de Llosa é a obsessão por um método de escrita, por estratégias de composição, pela frase lapidada, mas sem ornamentos ou maneirismos. Exigências que são atributos de todo escritor preocupado com a linguagem; mas, nesse caso, a fonte é declaradamente flaubertiana.
Ele dedicou o ensaio "A orgia perpétua" ao romance "Madame Bovary"; trata-se de uma homenagem crítica ao mais endeusado de seus precursores. A devoção flaubertiana, assinalou José Miguel Oviedo, é o resultado de uma coincidência no gosto pelo rigor e as simetrias, sobretudo se aplicadas à descrição da realidade objetiva ( Mario Vargas Llosa, la invención de la realidad, editora Barral, Espanha).
Na sua obra ficcional Vargas Llosa usou e desenvolveu a montagem de diálogos presente no "Madame Bovary", na famosa cena do comício agrícola de Yonville; uma ousadia que "consiste em intercalar partes de um diálogo a partes de outro entre os mesmos personagens, em situações temporal e espacialmente distintas" , como apontou Benedito Nunes ao analisar a ilusão da simultaneidade nos romances "Madame Bovary" e "A Casa Verde" ( O Tempo na Narrativa, editora Ática).
É nesse romance exuberante (que se passa nas cidades, na floresta e na região desértica ao norte do Peru) que se configura a síntese mais notável do que o autor chama de "novela total". Na acepção de Vargas Llosa, o "romance total" abarca vários níveis da realidade, a fim de transfigurá-la através da linguagem.
Nessa transfiguração se entrelaçam o individual e o coletivo, o lendário e o histórico, o cotidiano e o mítico. Projeto ambicioso, que se por um lado deriva de escritores como Balzac, Stendhal e Tolstói, por outro aponta para novos modos de narrar, inaugurados por Flaubert e aprofundados por alguns dos escritores já citados.
Mas esse projeto estético encerra algo mais: uma reflexão sobre o romance, este artifício que enleva o leitor e o leva a um mundo imaginário e fantasioso, um mundo que nos parece dizer que a realidade não basta. O verso de T.S. Eliot que serve de epígrafe à comédia "Kathie y el Hipopótamo" ilustra com muita beleza esse desejo de evasão, de sonho, de mergulho no imaginário: "Vai, vai, vai, disse o pássaro: o ser humano não pode suportar tanta realidade".

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