São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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Fracasso de Llosa vira fábula moral

ROBERTO VENTURA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mario Vargas Llosa conta, em "Peixe na Água", sua desastrada campanha para as eleições presidenciais no Peru em 1990. Escritor consagrado, mergulhou na política ao liderar os protestos (julho de 87), contra as medidas de nacionalização e estatização de bancos decretadas pelo presidente Alan García.
As memórias de Vargas Llosa que acabam de ser lançadas no Brasil, permitem reler um livro que aparece hoje deslocado em sua obra ficcional, voltada para temas peruanos: "Guerra do Fim do Mundo". Lançado no Brasil em 1982, um ano após a edição espanhola, gira em torno de um episódio brasileiro: a criação e a destruição de Canudos, liderada pelo místico Antônio Conselheiro no sertão da Bahia, de 1893 a 1897.
O escritor projetou, sobre Canudos, as mesmas imagens de caos e anarquia, com as irrupções irracionais de violência, que povoa seus livros dos anos 80 e 90. Tratou nos romances "A História de Mayta" (1984) e "Lituma no Andes" (1993), dos movimento de guerrilha, como o Sendero Luminoso, o Movimento Revolucionário Tupac Amaru, que dividira seu país nas duas últimas décadas.
Em "A Guerra do Fim do Mundo", Llosa procurou fugir à camisa-de-força do romance histórico. Mesclou fatos reais a outros inventados e criou personagens fictícios, como o anarquista escocês Galileo Gall, que vê em Canudos a realização das utopias libertárias socialistas. Alternou, como contraponto musical, múltiplas vozes e pontos de vista, técnica inspirada no norte-americano William Faulkner e empregada com êxito desde seus primeiros livros.
Mas é um romance menor, que falha pela construção esquemática de personagens, reduzidos a símbolos. É o caso do conflito entre o guia sertanejo Rufino, que se apega a um primitivo código de honra, e o anarquista Gall, com sua pregação da união revolucionária dos pobres e oprimidos.
Causa estranheza a ênfase exagerada no fanatismo religioso dos adeptos do Conselheiro tendo deixado de lado a organização social da comunidade, que cresceu graças à agricultura e pecuária, até se tornar a segunda cidade da Bahia, com 25 mil habitantes.
Intriga ainda o desaparecimento de Euclides da Cunha em um romance repleto de personagens históricos. Testemunha ocular da guerra, Euclides denunciou o massacre da vila pelas forças militares em "Os Sertões", de 1902. Foi a principal fonte de Vargas Llosa, que o homenageou na epígrafe e o comparou, em entrevistas, a Alexandre Dumas, Tolstói e Faulkner como um dos autores que mais o impressionou.
Mas, em vez de Euclides, surge no romance um jornalista míope, que vai a Canudos, mas quebra os óculos. O personagem representa, segundo Vargas Llosa, a "cegueira ideológica" intelectual latino-americano, com sua "impotência para mudar a coisas". Mas é, ao meu ver, um metáfora simplista e constrangedora pelo intento de tudo dizer sem rodeios.
Vargas Llosa procurou superar sua própria cegueira e impotência ao se lançar à disputa presidencial no Peru em 1990. "Peixe na Água é uma fábula moral, em que relata tal fracasso. As forças do bem, representadas pela Frente Democrática e pelas propostas neoliberais, enfrentaram o poder maléfico do nacionalismo e corporativismo, tidos como responsáveis pelo atraso e miséria do Peru. O escrevinhador se propôs uma tarefa civilizatória de explicar à massas as vantagens da desestatização da economia.
Mas sua palavra redentora nem sempre encontrou interlocutores adequados. Para uma platéia de sindicalistas, que gozavam de estabilidade no emprego, esforçou-se em explicar os prejuízos destes privilégios... A camadas pobres do Peru viram o choque econômico neoliberal como um mal apocalíptico, assim como os seguidores do Conselheiro tinham reagido à proclamação da República no Brasil.
Don Mario foi incapaz de esconder, nos comícios, sua aversão ao contato com as multidões, que o cercavam e apalpavam, oferecendo bebês para beijar e mulheres para dançar: "Eu tinha que fazer milagres para disfarçar minha antipatia por aquele tipo semi-histérico de empurra-puxa-beija-belisca-chuta". Chegou a ser atacado em um pequeno localidade, por uma "horda enfurecida" que parecia saída "do fundo dos tempos: "Seminus, com cabelos e unhas compridíssimos, rodeados de crianças esqueléticas e barrigudas, rugindo e vociferando."
Vargas Llosa liderou todas pesquisas. Sua campanha foi a mais cara já feita no Peru, com um custo estimado entre US$ 4,5 e 10 milhões. Mas perdeu a eleições, em junho de 1990, no segundo turno, por uma diferença de 23 pontos percentuais, para Alberto Fujimori, um desconhecido engenheiro, ex-reitor da Universidade Agrária, de origem japonesa.
Llosa foi rejeitado como porta-voz dos ricos e brancos, aliado dos conservadores e homens de negócios. Fujimori se apresentou como candidato à margem do sistema político, com o slogan: "Um presidente como você".
Vargas Llosa alterna, em "Peixe na Água", duas narrativas paralelas: as memórias da adolescência e juventude, de 1946 a 1958, mais instigantes do que o relato político de 1987 a 1990. Os capítulos ímpares tratam de sua formação política e intelectual, o que dá ao desastre eleitoral, relatado nos capítulos pares, um tom irônico. Tanto os anos de formação quanto os de campanha se encerram com sua partida do Peru. Foi, em 1958, para a Espanha em busca de uma carreira como escritor. Mudou-se para Londres, em 1990, para retornar à atividade literária.
O relato de juventude vai interessar os fãs do escritor, que reconhecerão muitos dos locais e situações de seus melhores romances, como o colégio militar de "Batismo de Fogo" (1962), em que ingressou para escapar ao pai tirânico. Ou a tia Julia, de "Tia Julia e o Escrevinhador" (1977), atraente divorciada de 32 anos, cunhada de sua mãe, com quem se casou, aos 19, escondido da família.
Algumas das páginas mais fortes de "Peixe na Água" falam do ódio que aprendeu a sentir nas mãos do pai, que o espancava e humilhava. Só foi conhece o pai, que julgava morto, com 10 anos idade, quando este reapareceu, após ter abandonado sua mãe grávida e recém-casada. A perda da inocência dá início à memórias. Escapou, na juventude, à brutalidade do pai e já adulto superou a desilusão política pelo mergulho na literatura. Foi nela que deu ordem às suas paixões e sentimentos.

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