São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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O paradoxo latino

JORGE CASTAÑEDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos tempos atuais, o número de adeptos da mágica dupla mercado-democracia cresce aceleradamente. As peripécias e tribulações desses crentes ou cruzados refletem o caráter contraditório deste par, aparentemente tão harmonioso.
Num mundo ideal, tudo que é desejável é compatível: as reformas econômicas de mercado de feição conservadora atualmente em curso na América Latina geram crescimento, emprego, gastos e diversas outras sinergias.
O conjunto de benefícios decorrentes das privatizações, da liberalização comercial, dos investimentos estrangeiros e da desregulamentação traz resultados positivos e tangíveis para a população, que, satisfeita com seu futuro, mesmo que não o esteja com seu presente, apóia governos honestos, competentes e ousados.
Esse apoio tranquiliza seus receptores, que promovem eleições limpas e regulares, respeitam os direitos humanos e se comprometem a fundo com a democracia. Esta, por sua vez, reforça o mercado: ela consolida a vigência da legalidade, dos direitos de propriedade e da redistribuição de oportunidades, se não de resultados.
Já o havia dito, anos atrás e com eloquência, um dos decanos do desenvolvimentismo latino-americano, Albert O. Hirschman: não há razão alguma pela qual todas essas coisas tão atraentes devam caminhar juntas. Quando de fato coincidem, de forma duradoura, em outras latitudes, tem sido em consequência de uma multiplicidade de fatores de toda espécie, que podem ou não existir na América Latina, hoje ou antes.
E, paradoxalmente, uma das primeiras vítimas da falta de coincidência destas duas construções humanas que não costumem acompanhar uma à outra foi um dos principais arautos de sua suposta simultaneidade imperativa: Mario Vargas Llosa. É esta a conclusão do grande texto hoje lançado no Brasil: "O Peixe na Água".
O livro –diário de campanha e autobiografia– tem inúmeras virtudes: beleza literária, honestidade política, desapego pessoal, a capacidade de enxergar aquilo que os outros deixam passar desapercebido.
E, ao longo de sua narrativa, o autor revela o que é sem dúvida sua qualidade mais atraente, para o estranho: uma vitalidade existencial e uma invejável paixão pelas idéias –geniais, descabidas ou banais.
Mas estas memórias prematuras mostram também a contradição insuperável com que o autor se deparou, ao confrontar-se com o que parece ser o dilema não apenas de seu Peru natal, mas de toda a América Latina: o que acontece quando as condições que possibilitam o mercado são o próprio oposto da democracia?
Não que Vargas Llosa tenha subestimado o problema. Depois de muitas belas páginas dedicadas a narrar as vicissitudes de um intelectual cosmopolita na Amazônia peruana ou no altiplano andino, o derrotado candidato presidencial procura transmitir ao leitor algumas reflexões sucintas sobre um tema alheio a seu livro: o que aconteceu em seu desafortunado país depois das eleições de 1990.
Faz um esforço louvável, mas dificilmente frutífero, para demonstrar que nem o autoritarismo de Alberto Fujimori, nem sua política econômica de livre mercado exacerbado se parecem, o mínimo que seja, com o que Vargas Llosa apregoava.
Em suas próprias palavras: "Então no Peru e em muitos outros países, começou-se a dizer que, embora eu tivesse sido derrotado nas urnas, havia vencido as eleições por delegação... porque o presidente Fujimori se havia apropriado de minhas idéias e punha em prática meu projeto de governo... Acho que foi essa minha verdadeira derrota".
Embora o escritor procure diferenciar seu projeto daquele do engenheiro agrônomo, inclusive no aspecto econômico –por exemplo, apontando as diferenças entre privatizar empresas públicas apenas para "acabar com o déficit fiscal e dotar de fundos as arcas exaustas do Estado" e fazê-lo para "criar uma massa de novos acionistas e um capitalismo de raízes populares", no fundo o que separa Vargas Llosa de Fujimori é a política, isto é, a democracia.
Apesar do que o autor hoje expatriado reitera insistentemente, no fundo o desenfreado radicalismo de livre mercado de Fujimori não se diferencia, essencialmente, das intenções de Vargas Llosa, e sim do que este teria feito. A razão desta diferença é que o autor não teria recorrido ao autoritarismo e à corrupção desenfreados para aplicar seu programa, mesmo que só assim este se mostrasse viável.
Por motivos peculiares, e ao término de um caminho repleto de voltas, Vargas Llosa se tornou –se é que não o foi desde sempre– um democrata, e por toda sua vida foi um homem honesto. Fujimori obviamente não é democrata e seus colaboradores mais próximos, ao que tudo indica, não são homens honestos.
Mas o episódio peruano –e o lógico desencanto do autor diante da repentina conversão de muitos de seus partidários e amigos ao regime emanado do "autogolpe" de 5 de abril de 1992– ilustra os perigos da tão desejada, porém fictícia, identidade entre democracia e mercado.
Na realidade, os regimes latino-americanos que aderiram com fervor às supostas delícias do livre mercado ao estilo thatcheriano constituem um desmentido categórico de tal assimilação. Quando outros fizeram o trabalho sujo –como no Chile, sob Pinochet–, é viável combinar democracia, mercado livre ao extremo e um governo honesto e competente, como o de Patricio Aylwin. O preço e as condições de possibilidade foram 15 anos de feroz ditadura.
Mas sem esse antecedente, o resultado é patético: as reformas econômicas tão caras a Vargas Llosa vão acompanhadas do autoritarismo e da corrupção que têm caracterizado regimes como o do próprio Fujimori, o de Menem, na Argentina, o de Salinas de Gortari, no México, e o de Carlos Andrés Pérez, na Venezuela.
O fato de certas pesquisas sugerirem uma hipotética popularidade dos governantes acima mencionados, fora das urnas, apenas consagra mais uma vez o velho caudilhismo da região: "Ele pode ser mulherengo e ladrão, mas queremos Perón."
Convém recordar que o círculo que une o mercado e a democracia representativa só tomou forma ao longo dos anos, no Ocidente. Sua conformação foi paulatina, e em nenhum caso isenta de contradições.
O tipo de democracia em questão foi, durante muito tempo, limitado (excluindo as mulheres em todas as partes, os negros nos Estados Unidos, os analfabetos e homens "sem propriedades" na Europa). O tipo de mercado que efetivamente coexistiu com uma democracia mais incluente não foi o de Hayek ou sequer o de Smith, e sim o mercado regulado, modulado ou limitado por uma infinidade de mecanismos –desde a legislação social até o fantasma do comunismo– que começa a surgir na Europa neste século.
Nem a excluente democracia do século 19, nem o mercado com rosto humano do pós-guerra ou da pós-depressão, prevalecem hoje no Peru ou no resto da América Latina.
Não apenas o neoliberalismo econômico não resulta em democracia e seu bom governo consequente, como tudo indica que a condição de possibilidade do neoliberalismo é, hoje, na América Latina, justamente a eliminação ou a redução da democracia.
As mesmas razões que levaram Mario Vargas Llosa à derrota –as pessoas não querem choques ou golpes a suas formas de vida, nem uma exacerbação da pobreza, já extrema– obrigam outros adeptos já eleitos a recorrer ao caminho da imposição.
E se as pessoas não a querem, ou se procura outra solução ou se lhes nega o direito de opinar. Não duvido que Vargas Llosa teria optado pelo primeiro caminho, mas ele deveria reconhecer que o mais frequente, quase o único em nosso continente, hoje, é o segundo.

Tradução de Clara Allain

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