São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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Integração destrói tribos e cria indivíduos

MARIO VARGAS LLOSA
DO "EL PAÍS"

Em janeiro de 1983, oito jornalistas e um guia da região de Huanta, nos Andes peruanos, foram assassinados por uma multidão enfurecida de índios iquichanos, que os tomaram por terroristas do Sendero Luminoso. Terrível e cruel, o crime de Uchuraccay não foi, entretanto, gratuito, e sim o ponto culminante de um processo que se iniciara muito antes, com as iniquidades cometidas contra essas remotas comunidades por destacamentos senderistas, que os índios eram obrigados a hospedar e alimentar, aos quais eram obrigados a entregar animais e que, além de tudo isto, haviam assassinado vários camponeses.
Fartos desses abusos e encorajados pelo Exército, os iquichanos decidiram defender-se. Para isso, procederam segundo suas próprias tradições: convocaram uma reunião de todas as comunidades desse grupo étnico, durante a qual discutiram e votaram a declaração de guerra contra o Sendero Luminoso.
Nos dias seguintes, emboscaram, capturaram e assassinaram senderistas de fato e outros presumidos, em diferentes lugares daquela região. Eram estas as mortes que vinham investigar os oito jornalistas assassinados na periferia de Uchuraccay, naquela manhã sinistra de janeiro de 1983.
A Comissão que investigou esses fatos, da qual fiz parte, nomeou como assessores um grupo de sociólogos, antropólogos, juristas e um psicanalista, cuja ajuda nos foi muito valiosa na hora de avaliar o ocorrido dentro do complexo contexto político e cultural peruano. As conclusões da Comissão foram rechaçadas pelos setores ditos "progressistas", pois não coincidiam com seu próprio veredito, cozinhado ideologicamente e com uma alegre manipulação dos fatos, e que responsabilizava exclusivamente as Forças Armadas pela morte dos jornalistas.
A campanha jornalística e política desses setores paralisou o governo e o Exército, que se negaram a dar aos índios iquichanos as armas que estes pediam para defender-se das represálias do Sendero Luminoso. Assim, as colunas senderistas puderam entrar facilmente em Uchuraccay e vingar-se, assassinando dezenas ou centenas de camponeses –nunca se saberá quantos, porque as estatísticas oficiais não abrangem esses homens primitivos da serra peruana. O genocídio cometido em Uchuraccay foi apenas mencionado pela imprensa, e ninguém perdeu seu tempo investigando-o. Entre os sobreviventes daquela matança coletiva, as Forças Armadas entregaram ao poder judicial três iquichanos. Para acalmar uma opinião pública exacerbada pela campanha jornalística, o tribunal que julgava o assassinato dos jornalistas os condenou a 25 anos de prisão. Pouco tempo depois, um daqueles infelizes bodes expiatórios morreu em sua cela, com os pulmões corroídos pela tuberculose.
O antropólogo Juan Ossio, que foi assessor da Comissão de Uchuraccay e que naquela época salvou a honra dos seus colegas de profissão, tentando abrir os olhos da opinião pública para o que verdadeiramente acontecera, publica agora um livro de ensaios, "As paradojas del Perú oficial", em que aquela infeliz história aparece várias vezes, contrastada com o que aconteceu depois, e como ponto de partida de uma polêmica reflexão sobre o destino que aguarda, no Peru do futuro, os vários milhões de peruanos que, como os índios iquichanos, vivem à margem da modernidade e do mundo ocidental, imersos numa cultura cujas fontes e chaves descendem das do mundo pré-hispânico.
O que aconteceu depois foi muito simples: aquilo que os camponeses de Uchuraccay tentaram fazer em 1983 –defender-se dos ataques terroristas –e que, devido ao trágico mal-entendido que causou a morte dos oito jornalistas, provocou um repúdio generalizado, passou em poucos anos a ser uma política oficialmente promovida e universalmente aprovada por uma sociedade que os extremos demenciais da violência terrorista levaram à beira do desespero. Hoje em dia, todos reconhecem que as rondas camponesas desempenharam um papel fundamental nos duros revezes sofridos pelo terrorismo nos Andes, e sobretudo na região de Ayacucho.
Não obstante, o problema que possibilitou aquele mal-entendido –a existência, no Peru, de duas culturas, uma moderna, ocidentalizada e urbana e outra tradicional, rural e primitiva, separadas, ademais, por preconceitos exacerbados e imensas diferenças econômicas– se conserva intacto, e constitui um desafio intelectual e político temível. Por que isso acontece? Porque nesse assunto não existe nenhum bom exemplo a se seguir, nenhum modelo válido para se imitar.
Todas as sociedades que resolveram esses problemas de dualidade cultural o fizeram a um preço que, como Juan Ossio repete incessantemente, parece ser moralmente inaceitável: uma "mestiçagem" que, na verdade, significa a absorção da cultura mais fraca e arcaica pela mais poderosa e moderna, isto é –em todos os casos– a ocidental. Que aos índios do Peru possa acontecer o que aconteceu aos dos Estados Unidos –ou aos do Chile ou da Argentina–, que desapareceram sacrificados no altar do moderno, parece a Juan Ossio não apenas um intolerável crime de lesa-humanidade, como também um desperdício estúpido, pois apesar de seu aparente primitivismo, o acervo cultural dessa sociedade andina de quechuas e aymaras contém, diz ele, uma infinidade de elementos que podem coexistir com a modernidade e enriquecê-la consideravelmente.
Seu livro é uma interessante refutação de mitos inveterados relativos à "ayllu", ou comunidade agrária andina, retratada durante muito tempo como um exemplo do sistema "socialista" dos incas, e que na realidade, diz Ossio, concilia tradicionalmente as formas de trabalho cooperativo com a propriedade individual da terra e que, por essa razão, poderia facilmente adaptar-se e mesmo prosperar num sistema de economia de mercado. Isto, desde já, não é impossível. Existem casos –como já se viu no Japão com o "esprit de corps" dos clãs atávicos, que contaminou as empresas modernas– de instituições tradicionais que não apenas se adaptaram, como também se converteram em um precioso instrumento de modernização.
Entretanto, não são estas aclimatizações de detalhe as que constituem o eixo de sua argumentação. Sua tese é a favor de uma sociedade futura em que, de acordo com as teorias multiculturalistas em voga, os quechuas e aymaras do Peru possam modernizar-se sem renunciarem à sua "identidade cultural" –suas línguas, suas crenças, seus costumes, suas instituições–, e participar de todas as vantagens da tecnologia, da ciência e da economia contemporâneas, par a par com os peruanos ocidentalizados.
Será que isto é possível? Juan Ossio acredita apaixonadamente que sim, como o acreditava José María Arguedas, que também escreveu páginas muito belas sobre esse anseio, e eu gostaria de poder compartilhar dessa bonita convicção. Mas, muito a contragosto, devo confessar meu total ceticismo a respeito. Francamente, não vejo como uma cultura mágico-religiosa poderia conviver com as práticas cotidianas de uma sociedade industrial moderna. A sobrevivência do quechua é sem dúvida possível, e oxalá venha a generalizar-se a educação bilíngue que Ossio propõe e surja no futuro, por exemplo, uma rica literatura nessa língua. Mas se a sociedade andina se modernizar, mesmo que continue falando quechua, essa "identidade cultural" preservada até agora graças ao semi-imobilismo histórico em que a exploração e a marginalização vêm mantendo o povo indígena, terá mudado irremediavelmente de forma e adquirido esses traços comuns que são, em todas as partes, os da modernidade.
Por outro lado, tenho a convicção de que –já sei que isto é uma heresia para muitos antropólogos, incluindo o antropólogo sem preconceitos e vacinado contra estereótipos ideológicos pela boa escola pragmática de Oxford, que é Juan Ossio– a famosa "identidade cultural" que voltou a estar em moda é, na melhor das hipóteses, uma ficção. E, na pior, uma prisão da qual convém escapar o quanto antes se se quer ser um homem livre e contemporâneo.
Pois a "identidade cultural" é uma categoria gregária, que pressupõe uma soma de características –raciais, culturais, religiosas, sociais– compartilhadas por uma sociedade inteira e que a definem no todo e nas partes: o conjunto social e os indivíduos que, separadamente, o compõem.
Isto é verdade apenas para muito poucas sociedades tribais que vivem no isolamento mais absoluto, alheias ao processo de internacionalização da vida contemporânea. No próprio instante em que essas sociedades se contaminam de modernidade, aquela idiossincrasia coletiva começa a desagregar-se, graças a um processo de diferenciação individual, que arranca homens e mulheres dessa placenta comum –a tribo–, abrindo a eles a oportunidade de escolher suas próprias identidades.
Esse processo, que desde um certo ponto de vista é trágico, porque significa o desaparecimento de costumes, crenças, ritos e mitologias atávicos, tem, não obstante, uma contrapartida feliz: a da liberdade individual, a possibilidade de cada um escolher seu próprio destino e não ter fatalmente que assumir o do grupo social.
Lendo os estimulantes ensaios de Juan Ossio, descobre-se que, para um país como o que produziu a tragédia de Uchuraccay, a primeira prioridade é colocar ao alcance de todos seus cidadãos as mesmas oportunidades para viver em paz, dentro da lei e a salvo daquela marginalização e daquele desamparo que permitiram não apenas o atroz assassinato dos jornalistas, como também a matança de toda uma comunidade indígena, diante da indiferença (para não dizer o desprezo) do resto da sociedade supostamente civilizada.
Copyright Mario Vargas Llosa. Os direitos internacionais deste texto pertencem ao jornal "El País". O Mais publica quinzenalmente a coluna "Pedra de Toque"
Tradução de Clara Allain

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