São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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Em preto e branco

ESTHER HAMBURGUER; OMAR RIBEIRO THOMAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Brasil está mudando. A polêmica gerada pela novela "Pátria Minha" em torno da questão racial seria impensável até recentemente, quando o Brasil se orgulhava de não ser racista. Haveria diferença, mas social. A idéia de que seríamos um povo cordial, avesso à violência, fechava um círculo infernal, que perpetuava ad infinitum as desigualdades, impedindo a emergência do conflito.
A discriminação racial no Brasil se perpetuou graças à invisibilidade. Imagens de convivência pacífica, aliadas a uma intimidade inter-racial, relegaram a discriminação à esfera privada. Num país miscigenado como o Brasil o conflito inter-racial desafia a teoria com um dos dilemas contemporâneos: o de ampliar a democracia, reconhecendo a diferença.
Ao lado da crise econômica e social, no entanto, mergulhamos numa crise de identidade: atualmente os comerciais que congregavam pacificamente crianças indígenas, brancas e negras fraternalmente representando o país do futuro não têm o mesmo apelo.
Somos um país violento, há medo, chacinas e matanças de pobres, crianças, índios e negros que afligem também a classe média. Os índios não representam só nosso passado idílico: fazem parte do Brasil do presente, estão aqui para ficar, lutam por terras e direitos consagrados na constituição.
A pobreza e a desigualdade evidentes entre brancos e negros expõe as chagas de um país que, segundo alguns indicadores socioeconômicos, tem uma estrutura ainda mais perversa do que a daqueles países onde o racismo é reconhecido como problema.
A idéia de que vivemos em uma democracia racial vem de longe e se tornou quase que uma noção de senso comum, legitimada por uma convivência racial que, embora marcada por discriminação e conflito, se faz por negociação permanente. Referendada pelo pensamento social brasileiro pelo menos desde Gilberto Freyre, foi questionada pelos pesquisadores da década de 50, como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, que apontaram a desigualdade social entre negros e brancos.
O paradigma das classes sociais, no entanto, relegou a segundo plano a questão racial, transformando-a em social. O capitalismo contemporâneo podia no Brasil se desenvolver em paz. Os conflitos que agitavam o continente africano no processo de descolonização ou que promoviam violência nos Estados Unidos em plena luta pelos direitos civis da população afro-americana não teriam porque chegar ao gigante luso-tropical.
Finalmente o consenso se rompeu. Os blocos afro de Salvador procuram entrar no circuito internacional da world music, construindo não um Brasil de brancos, negros e índios, mas de negros. Líderes indígenas rodam o mundo junto a personalidades internacionais, denunciando as atrocidades cometidas nos sertões. Imagens da violência urbana povoam a mídia nacional e internacional. O conflito está em pauta. Não há como escapar. O Brasil mudou.
No entanto, as relações entre brancos e negros no Brasil não se expressam pelo mesmo tipo de conflito que tem temperado esta mesma relação nos Estados Unidos ou na África do Sul. A violência e a desigualdade convivem com uma certa intimidade que inibe a explicitação do conflito racial.
Paradoxalmente, observamos um curioso processo de reafricanização no campo religioso afro-brasileiro. A umbanda –religião que, no plano mítico e ritual, procurou solucionar a "fábula das três raças" e que se autodefine como religião brasileira– está em baixa.
O candomblé, religião africana que tem na África um valor, se impõe num processo onde se dá a expulsão de santos católicos e caboclos. Significativamente, a vitória dos Orixás e dos Voduns é feita pela ação de pais e mães-de-santo independente de cor ou origem.
Tanto o Brasil mudou que o conflito racial aflorou na novela das oito. A polêmica gerada em torno da novela "Pátria Minha" diz muito, contudo, dos limites do nosso espaço público. O conflito racial em horário nobre incomoda a todos. Incomoda aqueles que, ao viverem a discriminação cotidianamente não toleram ver o seu sofrimento pessoal num espaço público por natureza como a televisão –incomoda a segmentos dos movimentos negros, que não se identificam com a resposta dos personagens negros da novela.
Incomoda também aos empresários, descontentes com a imagem recorrente de maus, corruptos e agora racistas com que as telenovelas os retratam. Incomoda, por fim, aos setores de classe média e alta da sociedade brasileira –na sua esmagadora maioria brancos– que não assumem comportamentos racistas publicamente, mas convivem com eles nos insterstícios das relações sociais ou em contextos privados que permitem manifestações de mau gosto, como piadas de cunho racista.
Estes últimos, no entanto, podem ficar tranquilos: o racista é o vilão Raul Pelegrini. A existência de um branco mau e racista implica na predominância de uma maioria branca –os outros personagens– que se escandaliza diante do racismo evidente do cruel empresário. Aqui voltamos, talvez, aos tempos da Escrava Isaura e ao mito da boa escravidão: a existência de um mau senhor implica logicamente na sua contrapartida, o bom senhor. Entretanto, no interior do sistema escravista as relações são por definição violentas, não cabendo tal oposição.
O tabu que cerca o conflito racial, condenando-o a uma invisibilidade perversa, contrasta com a visibilidade consagrada pela mídia aos conflitos entre homens e mulheres. Consideradas consumidoras privilegiadas, as mulheres gozam de uma ampla exposição na mídia, que procura interpretar e dialogar com os anseios do público feminino. Ao longo dos anos, as protagonistas femininas ganharam espaço. Valoriza-se mulheres fortes, profissionais independentes com direito ao prazer sexual e ao amor.
Temáticas dirigidas às mulheres encontraram nas novelas um espaço ideal de exposição e através delas saturaram –às vezes de maneira perversa– nossa sala de jantar.
Isso não impede, é claro, que as mesmas telenovelas retratem cenas de machismo evidente. O mesmo personagem de Tarcísio Meira em "Pátria Minha" humilha a esposa infiel, que por sua vez reage de maneira submissa. Mas nenhum dos casos inspiraram reações de mulheres, talvez dessensibilizadas por uma certa hipervisibilidade.
Vivíamos numa democracia racial, desde que não se falasse de cor. A polêmica da novela das oito indica uma ampliação na nossa (limitada) esfera pública. O Brasil tem a chance de se renovar, enfrentando as chagas que persistiram à escravidão.
Aprofundando nosso multiculturalismo que não recusa a miscigenação, poderemos talvez tornar-nos cada vez mais Nagô, sem a expulsão necessária dos santos católicos e caboclos.

ESTHER HAMBURGUER é doutoranda em antropologia na Universidade de Chicago e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)
OMAR RIBEIRO THOMAZ é doutorando em antropologia na Universidade de São Paulo e pesquisador do Cebrap

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