São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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A versão de Dom Quixote

MOACYR SCLIAR

Em algum lugar do universo (de cujo nome não me quero lembrar) os espíritos de Dom Quixote e Sancho Pança conversavam.
– Você sabia, dom Quixote – perguntou o gordo Sancho – que na cidade de São Paulo, no Brasil, há um colégio cujo nome homenageia nosso criador, o glorioso Miguel de Cervantes?
– Não sabia – disse Dom Quixote.
– E você sabia – continuou Sancho – que este colégio esteve em evidência por causa de uma grande confusão?
– Não sabia – admitiu o Cavaleiro da Triste Figura. – Que confusão foi esta?
– Parece que um professor deu um tapa numa aluna. O que gerou protesto. Imagine que a mãe da menina chegou a escrever ao Rei da Espanha, pedindo providências! O meu caro Dom Quixote não acha isto um absurdo?
Dom Quixote ficou calado. Acostumado aos silêncios de seu amo, Sancho continuou:
– Não sei o que pensa o meu caro Dom Quixote, mas eu, como homem prático, dou inteira razão ao professor. Ele estava afônico, a menina promovia desordem na classe, o que podia ele fazer senão dar um tapa na diabinha? Está no seu direito de professor. Mais: está na sua obrigação. Já diz o Livro Sagrado que, quem poupa a vara, estraga a criança. E note o meu caro Dom Quixote que nem vara o mestre do Colégio Miguel de Cervantes usou. Não foi portanto um castigo, foi um desabafo. E mesmo que fosse castigo, qual o problema? O mundo mudou muito desde que lá estivemos, Dom Quixote. Já não existe a noção da ordem, da hierarquia. Os jovens, sobretudo, andam muito indisciplinados. De modo que um castigo de vez em quando não lhe faria mal. O que acha o meu amo?
Dom Quixote continuava em silêncio. Sancho pensou até que ele não tinha ouvido; mas ele tinha, sim, escutado a história muito bem, e agora estava pensando. Lembrava o desastre que tinha sido o seu ataque aos moinhos de vento, a asa do diabólico engenho levantando-o às alturas e jogando-o ao chão. E apesar do que dizia o prático Sancho Pança, sentiu-se consolado. Afinal, melhor atacar moinhos de vento do que uma criança avoada.

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