São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Índios escapam do direito dos brancos

WALTER CENEVIVA

Da Equipe de Articulistas Ser cidadão em qualquer país civilizado corresponde a poder exercer livremente os direitos civis próprios dessa condição, inclusive os de participar, na democracia, dos atos de governo (eleger governantes e ser eleito pelo voto, por exemplo), de aquisição e controle de seus bens e de constituição da família legal, enquanto base da sociedade.
A cidadania –ou seja, o conjunto dos cidadãos– compõe o suporte do estado de direito, pois todas as coisas e todos os direitos valem com referência aos seres humanos nacionais ou estrangeiros que habitam o país, por si mesmos ou através de pessoas jurídicas. Tal é o sentido com o qual se deve ler o artigo 5º da Constituição, quando diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Mas, em matéria jurídica não se pode ir com muita sede ao pote. A leitura desatenta do artigo 5º leva ao desastre. As expressões "todos" e "de qualquer natureza" parecem, mas não são, absolutas. Isto é: nem todos são iguais perante a lei (independente de suas condições econômicas, esclareço) e há distinções legais a observar.
Nesta altura o leitor tem direito de perguntar onde quero chegar com essa dissertação monótona? Simples: desejo provocar meditação sobre índios brasileiros que, tendo muitos direitos, inclusive o de posse das terras em que tradicionalmente habitam, nem sempre sofrem a imposição dos deveres correspondentes. Enquanto outros indígenas são vítimas constantes do "progresso civilizado", no contato com os exploradores econômicos, que lhes provocam a destruição do "habitat", as doenças e a violência.
Reconheço a dificuldade de colocar a questão com equilíbrio isento da exploração político-publicitária que o tema propicia. Parece, porém, lógico –até por velha sabedoria– que a verdade está no meio termo. O exagero de afirmar que o branco, conquistador da terra, é um invasor sem direito de aqui permanecer, pois tudo pertenceu (e pertence) aos indígenas, está num extremo. O exagero de afirmar que todos os índios devem ser recolhidos pela chamada "civilização", para a integrar, em direitos e obrigações, está no outro extremo.
O período atual mostra uma transição que os juristas têm dificuldade de compor. Há índios vítimas de espoliação. Outros são proprietários, portadores de carteira de habilitação, alfabetizados, que negociam direitos sobre suas terras e que, quando chega a hora de cumprir obrigações penais ou civis, fogem delas e alegam sua condição de indígenas.
O cacique caiapó acusado de estupro, com a colaboração de sua mulher, dá atualidade a um lado do tema. Por insuficiência de provas, já que a demonstração pericial do recente defloramento da vítima não foi acolhida, ele foi absolvido. Sua mulher, que teria incentivado a violência, nos termos da denúncia, foi absolvida por não ter condições de compreender os efeitos que a lei dos brancos atribui a atos como os de que foram acusados.
Os mecanismos de integração natural dos índios à vida civilizada devem permitir, com maior clareza, sua caracterização, evitando a insuficiente garantia de seus direitos e a insuficiente imposição de suas obrigações. O meio termo prejudicial, deve ser corrigido. A dubiedade é ruim para a sociedade e para os índios, civilizados ou não.

Texto Anterior: Delação e cumplicidade criminosa
Próximo Texto: Ribeirão tem 3 mil jovens viciados em droga
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.