São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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Estabilidade é avanço da democracia

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma tarefa fundamental do novo governo do presidente Fernando Henrique é a de fazer uma integração tridimensional entre o governo, a administração e o povo.
Os governantes deste país têm operado, regra geral, na fixação de diretrizes, formulação de políticas e tomadas de decisão de maneira estanque. Aos gabinetes e às cúpulas governamentais são levados os estudos ou propostas produzidos pelas assessorias tecnocráticas e tomadas decisões, formulados planos e planejamentos e, burocrática e mecanicamente, é tratada a execução. Publica-se o ato no "Diário Oficial" e seja o que Deus quiser.
Algumas ordens são dadas. Esporadicamente, verifica-se o que está ocorrendo. Se alguém funciona mal no esquema, sua cabeça pode ser cortada, como exemplo.
A coisa vai se desenvolvendo em rotina tradicional, com alguns espasmos nervosos e histéricos, ocorrendo eventualmente.
Trabalha-se, via de regra, no setor público, como se a autoproclamada genialidade, clarividência e onisciência da cúpula governamental, encerrada em suas torres brasileiras de concreto aparente envidraçado, fossem suficientes para pôr em marcha a colossal máquina administrativa pública, operando em ritmo sincronizado. Esta sintonia fina não existe.
Há um total divórcio entre o governo, entendido como centro político de tomada de decisões, formulação de políticas e diretrizes, e a administração pública, que deve executar o que foi anteriormente decidido ou planejado.
A questão reside em que incumbe à administração cumprir substancialmente as leis do país. Mas a administração não é apenas um conjunto de leis, decretos e portarias. É, essencialmente, uma organização corporificada fisicamente por seres humanos –os servidores públicos.
E qual tem sido o tratamento dado pelo Estado brasileiro, através do governo, aos servidores públicos? Aos servidores públicos que devem viabilizar os programas governamentais, o tratamento tem sido madrasto. O pior possível.
O próprio governo permitiu que se fixasse uma imagem distorcida, junto ao público, do servidor como um ente parasita, relapso, incompetente, irresponsável e desleal. Entretanto, no dia-a-dia, a representação que o povo tem do governo e da administração pública é a fornecida pelo servidor público.
São servidores públicos que representam as ações do governo junto à comunidade. O guarda da esquina, os professores das escolas públicas, os médicos dos postos de saúde, o atendente do INSS e o contínuo da repartição.
É evidente que a qualidade da prestação de serviços públicos fica comprometida se o elemento humano da organização estatal se sente desvalorizado, desprestigiado e desmotivado. E, se a política governamental de recursos humanos se caracteriza por falta de planos de carreira, carência de treinamentos e reciclagem, aí acrescida a realidade dos salários vis, a prestação dos serviços públicos fica com o seu nível de qualidade profundamente comprometido.
E a pá de cal, levantada a cada anúncio de reforma constitucional, é a extinção da estabilidade. A tentativa de acabar com a estabilidade é a grande batalha de Itararé. Aquela anunciada com estardalhaço, mobilizando exércitos numerosos, mas que não houve.
A inversão de valores do surrealismo tupiniquim coloca a garantia da estabilidade como se fora conquista do corporativismo egoísta. Nada disso. A estabilidade é garantia do administrado, da coletividade, do povo.
Onde ela foi consagrada, contratual ou estatutariamente, consistiu em avanço da democracia. Garantia para o povo de que, protegido pela estabilidade no cargo, o servidor público possa resistir, com maior amparo, ao arbítrio, aos desmandos, às ilegalidades que eventualmente as chefias venham a determinar. E cumprir a sua missão sem concessões a influências políticas nefastas.
Nos ataques feitos à estabilidade, em verdade, tem sido atribuído ao servidor público a condição de vítima, de bode expiatório da insatisfação popular com os serviços públicos lastimáveis fornecidos pelo Estado.
Alega-se que o fim da estabilidade permitiria ao Estado depurar os seus quadros funcionais, de sorte a restar apenas uma elite, defenestrando os desidiosos e incompetentes. A história recente demonstra o contrário. Até há quatro anos, antes da edição do chamado Regime Único, no mínimo 95% dos servidores públicos não tinham estabilidade, pois o seu regime jurídico era o trabalhista.
Apenas as chamadas "carreiras típicas do Estado" tinham estabilidade. E ninguém foi posto para fora. Batalha de Itararé. Muito esforço para acabar com a estabilidade. E derrota fatídica em seguida, seja pela rejeição da emenda constitucional ou, se aprovada, a ineficácia da alteração, pois a história mostra o exemplo da inexistência da depuração, via demissões.
E há muita injustiça nas críticas. Atribui-se aos sindicatos de funcionários públicos características corporativistas, isto é, táticas egoísticas visando a obtenção de vantagens desvinculadas do interesse público. A situação dos servidores públicos da administração direta é de tamanha penúria salarial, de extremo desamparo, que a luta sindical consegue, quando muito, conquistas para assegurar muito pouco além da própria sobrevivência.
O governo tem o dever, em benefício da melhoria substancial dos seus serviços, de reconciliar-se com o servidor público. Prestigiá-lo, motivá-lo, valorizá-lo, aperfeiçoá-lo, treiná-lo, colocá-lo em estruturas de carreira, dar a sua atuação o sentido de missão e torná-lo um agente de mudanças, um agente da desburocratização do Estado.
É preciso conscientizar o servidor público de sua missão de servir adequadamente ao público, de prestar serviços de qualidade em especial aos mais necessários e demandados: saúde, educação, previdência, segurança pública, assistência social.
Possibilitar que a população se sinta identificada com o Estado. Restabelecer a relação de satisfação, empatia e integração entre o Estado e a sociedade que o mantém. Em suma, a população legitimar a atividade estatal, pois ter-lhe-ão sido ofertados serviços que signifiquem estar o Estado a executar a verdadeira política do bem comum, do bem estar geral.
O encontro marcado pelo povo com a eficiência e eficácia da atuação estatal passa pela reformulação das relações do governo, administração e povo, de modo que, irmanados e harmônicos, governo e administração pública possam satisfazer, finalmente, as esperanças renovadas do povo brasileiro. Eis aí o processo a ser desenvolvido, para legitimação efetiva do desempenho estatal.

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