São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O fim da cumplicidade

LUÍS NASSIF

A construção da cidadania é processo gradativo, marcado por alguns episódios exemplares. Esta semana, a condenação imposta pelo Supremo Tribunal Federal ao presidente do Senado, Humberto Lucena, por uso indevido da gráfica da casa, é um marco histórico nessa luta.
Houve quem estranhasse. Por que Lucena, se a prática era geral? Queria que se começasse por quem? Pelo contínuo? Lucena era a figura máxima, o presidente da casa, símbolo maior de um estilo de fazer política anacrônico e anti-social.
O Supremo mostrou estar vivo por muitas razões. Primeiro, por incorporar a nova ética pública à sua jurisprudência. Até então, um formalismo anacrônico e um detalhismo absurdo mantiveram durante décadas o Judiciário suspenso em formol.
Estava preso a um sistema de fazer leis que visava, em última instância, preservar o status quo, dar sobrevida a grupos de poder, permitindo-lhes atravessar com segurança todo movimento de renovação, como verdadeiros zumbis percorrendo incólumes a penumbra dos tempos.
Pior parte da herança patrimonialista portuguesa, esse emaranhado indecifrável de leis e regulamentos sempre visou estratificar correlações de força. É por isso que, em todo movimento de modernização, o ambiente econômico encontrava no arcabouço jurídico dificuldades enormes para avançar. Foi assim no pós-guerra, nos anos 60, na enorme renovação ocorrida nos anos 90.
Dois anos após o impeachment, o Supremo acende as antenas e capta, muito antes da classe política, os ecos da nova ética. Mais que isso: rompeu com a relação de subordinação ou de cumplicidade que sempre caracterizou essa grande e histórica conspiração institucional contra a cidadania. E esta é a segunda razão para se acreditar no Judiciário.
Em outros tempos, o STF passaria por cima do assunto, para não se expor às represálias do Legislativo. Agora, enfrenta a fera, num momento em que o Senado demonstra pouca ou nenhuma consciência de suas responsabilidades institucionais, indicando uma pessoa de vida polêmica, como o senador Gilberto Miranda, como seu representante em uma das áreas mais sensíveis de atuação: a preparação do orçamento público.
Não se pense que seja uma atitude cômoda. Ao romper com o pacto de não-agressão, o Judiciário ficará exposto a julgamentos e cobranças mais rígidos de outros poderes e da opinião pública. Mas é só assim que se rompe com a inércia, que se aprimoram as instituições, e que se constrói uma nação moderna e justa.

Texto Anterior: Modernizar o Congresso
Próximo Texto: Balança comercial retoma déficit de final dos anos 70
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.