São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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Lirismo da ausência

Era Tudo Sexo supera estereótipos da linguagem feminina

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A linha de evolução da poesia de Mônica Rodrigues Costa pode-se observar desde o fim dos anos 70/início dos 80, quando ela publicava poemas na revista "Caspa", do "centro acadêmico" da faculdade de Letras da USP.
Dessa conjuminância toda surge hoje a poesia madura de "Era Tudo Sexo", já apresentada na também coletânea de poemas "O Que (se) Passa" (Ed. Iluminuras, 1991, assinado ainda Mônica Costa Bonvicino). Os dois livros compõem uma unidade temática e de linguagem, onde o eu lírico é, por um lado, a figura clássica da mulher enamorada que espera; e, por outro, a mulher/qualquer-ser-humano que, se chega em casa e "lê o jornal como um homem", também passa a ferro camisas de algodão como passam "lapsos longos do meu tempo (...) que queimam por dentro".
Desde "O Que (se) Passa", a poesia de Mônica vem tratando da transitoriedade e da perda do amor. A mulher que, no primeiro livro, "espera com paciência/o calor exato do ferro a carvão" é a mesma que, no segundo, admite: "mas eu espero como se tivesse nascido para sofrer (...)/–ele não tem dia certo para chegar/como se fosse a sina de esperar (...)".
Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela mulher, diz Roland Barthes. "A mulher é sedentária, o homem é caçador, viajante; a mulher é fiel (ela espera), o homem é conquistador (navega e aborda). É a mulher que dá forma à ausência: ela tece e ela canta."
Também desde "O Que (se) Passa", a transfiguração poética do tema da espera acontece primeiro através de uma série de alterações semânticas realizadas através da exploração dos recursos de sintaxe na estrutura do verso. A demonstração da hipotética elipse do "se" é exemplo simples disso: o que passa é o que acontece, é o que se perde e é, em terceiro lugar, o que se vive.
"Era Tudo Sexo" radicaliza a experiência de linguagem poética do primeiro livro e vai além: as elipses, as haplologias ou omissões sintáticas ("Dia santo aniversário feriado/você não vem/passa o Dia dos Namorados") resultam nas sinonímias, nas polissemias: "Você não é toda a vida/matéria-prima/palavras escolhidas/às vezes invento/às vezes rima/às vezes lamento/às vezes o inesperado/nos toma de assalto".
Através da enumeração, da justaposição de uma palavra à outra –"desliza as mãos no seu corpo/uma marca de nascença/o signo do horóscopo/–de ontem–/ algum propósito/dígitos de sua presença/o diafragma/com diâmetro exato/algo que sirva de parâmetro, (...)"–, o mundo vai se substantivando, preenchendo de coisas que eliminem a espera do enamorado e a ausência do amado.
Dividido em partes chamadas "estações" (as do ano e as do metrô) o exercício poético de "Era Tudo Sexo" é transformar a transitoriedade natural na fixidez artificial das coisas.
Ao saturar de imagens o deserto do cotidiano, a poesia de Mônica dá voz ao eu lírico, "expectador sem fala" que, como observa Barthes, precisa se projetar nesse vazio de espera e ausência. "No terreno amoroso, as feridas mais profundas são provocadas mais pelo que se vê do que pelo que se sabe", diz Barthes. "A imagem é aquilo de que sou excluído. Ao contrário desses desenhos-charada, onde o caçador está secretamente desenhado na confusão do arvoredo, eu não estou na cena".
O poema "Verão" resume essa concepção: "albatrozes de caudas negras/imersas no céu/voam e mergulham no mar/por alimento, como acontece com o amor/fechar os olhos e ter o que imaginar". Acrescente-se a isso a dicção melódica próxima da linguagem oral e está moldado o carimbo poético deste intrigante "Era Tudo Sexo".
Intrigante: pois ainda que esteja implícita no título do livro a eterna queixa feminina por um "amor" romantizado em sentimento "superior" ao sexo ou idealizado em casamento –"era tudo sexo" pode querer dizer "era tudo só sexo", ou "era tudo sexo, quando devia ser amor"–, a frase-título é antes a afirmativa de si mesma, que se confirma e se reafirma no verso do poema: "era tudo sexo/era tudo enrolação", ou seja, "era festa/debaixo dos lençóis/gostoso, macio, a sós".
Nesse sentido a poesia de Mônica supera o estereótipo da linguagem literária "feminina" sentimental e que, conforme equivocadamente se convencionou observar, é menos "sexual" que a dos homens. A começar pelas epígrafes dos dois livros (a sexualidade aberta nos versos do poeta beat Allen Ginsberg) e a terminar pelo poema "Gravidez", a poesia de Mônica é uma excelente exceção.
Pode-se dizer que, no universo dos temas, é uma poesia que lembra a de Adélia Prado –é também a poesia feminina da mãe e dona-de-casa. A diferença é que, tanto no fato quanto na forma, Mônica, que é também editora da Folhinha, é uma Adélia Prado mais jovem, impudica, sem vergonha e sem Cristo (ou com Cristo e Xangô). Está muito mais para a "Female Author" (Autora Fêmea) de Sylvia Plath, em que a poeta é definida como uma jogadora, uma pecadora favorecida, feminina e metida (em tradução livre minha):
"O dia todo ela joga xadrez com os ossos do mundo:/Favorecida (enquanto a chuva começa, inesperado,/Lá fora da janela) ela se enrosca no acolchoado fundo/E mordisca um eventual bombom de pecado./Metida, grã-fina, feminina, ela nutre/Fantasias de chocolate em quartos de forros florais/Onde polidos criados-mudos sussuram rangidos futres/E rosas de estufa espalham florescências imorais."

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