São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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DOS TUPIS AOS TUCANOS

RICARDO MUSSE; AUGUSTO MASSI

Palmares não chegou a mudar as relações senhor/escravo
O Exército tem a chance de ampliar seu prestígio, como poder que encontrou seu lugar na sociedade depois do fim da Guerra Fria. Isso se não fizer ações paranóicas
No plano do imaginário há semelhanças entre o otimismo da campanha do FHC e a imagem da campanha do JK

Folha - E a ausência da história das mentalidades. O senhor discorda dessa concepção historiográfica?
Fausto - Não, não há discordância. Esse recorte de história narrativa com ênfase no econômico e no social, deve-se sobretudo ao projeto do livro, à existência de um determinado destinatário. Trata-se de uma visão deliberadamente conservadora, mas estou convencido de que não se aprofunda o conhecimento da história do Brasil sem se passar por coisas óbvias como fatos, sem conhecer melhor a base social, material e sem um conhecimento mínimo das controvérsias historiográficas acerca dessas questões.
Procurei, entretanto, a partir desse recorte tradicional, apresentar uma exposição mais criativa. Quando relato o episódio do Tiradentes, por exemplo –que não entraria num recorte da história das mentalidades ou mesmo da vida privada–, utilizando-me da observações históricas do José Murilo de Carvalho, me preocupo menos com o episódio em si, o qual narro de maneira breve, e muito mais com a construção da figura do Tiradentes como mito histórico. Isso tem a ver com a história do imaginário, das mentalidades.
Folha - Outra vertente que não foi colocada no primeiro plano é a assim chamada "história dos vencidos". Espanta que ao relatar o episódio de Palmares se fale em Domingos Jorge Velho, mas não em Zumbi...
Fausto - A noção de vencidos e vencedores não é sinônimo de dominação social. Pode-se perfeitamente fazer uma história dos dominados, dando ênfase à vida dos escravos, à sua capacidade de rebelião ou de adaptação. Tudo isso é válido. A noção de vencedores e vencidos se liga, porém, a conjunturas onde houve alternativas e alguém perdeu. Os vencidos não são necessariamente as camadas populares. Na Revolução Francesa os perdedores foram a corte e a nobreza, setores até então dominantes. Em 1930, os vencidos foram aquelas oligarquias mais apegadas ao sistema econômico e a estilos políticos vigentes na Primeira República. Quando se pensa em termos de classes polares –burguesia e proletariado– não tem sentido falar em vencedores e vencidos. Vencedores e vencidos quando? Em que momento houve insurgência operária nesse país? Em nenhum momento. Trata-se de uma fantasia.
Relato várias rebeliões populares. Isso, porém, não me impede de constatar que a inteligibilidade da história brasileira passa sobretudo pela compreensão da história daqueles que dominam. Entender estes mecanismos é importante mesmo quando se quer transformar a história brasileira. Não tive a intenção de escrever uma história edificante, mas sim uma história comprometida com uma forte dose de objetividade.
Folha - Essa concepção surgiu de certas análises da Primeira República...
Fausto - É óbvio que a força de trabalho imigrante foi subordinada pelo próprio fato dela ter se inserido no país na condição de colono. Deixando de lado biografias individuais que podem até ser trágicas, a trajetória desses imigrantes, em linhas gerais, é uma história, porém, de final relativamente feliz, de ascensão social facilitada pelas oportunidades de um capitalismo nascente.
Insistir na rebeldia dos imigrantes não faz sentido. Eles podem até ter participado de greves em 1917, mas, em seu conjunto, não vieram se rebelar contra nada, vieram fazer a América. Dou mais importância à imigração como fenômeno social –destacando sua ascensão e a transformação da sociedade paulista– do que à greve de colonos em Ribeirão Preto em 1912, da qual não deixo de falar.
Folha - E os escravos?
Fausto - No caso do negro procuro primeiro indicar que essa gente que vem para o país não é toda igual. Que essa gente é diferenciada, que existem grupos sociais com uma história diferenciada. No interior dessa situação de horror existiu um enorme processo de adaptabilidade, tanto no caso do negro americano, como no do negro brasileiro. Dizer isso não é imputar nenhuma inferioridade aos negros, nem é deturpar a história brasileira.
Afinal, o sistema escravista caiu tardiamente no Brasil. Ele funcionou adequadamente para os interesses do sistema por um largo período de tempo. Deve-se dar atenção aos movimentos de rebeldia dos escravos, mas é preciso cuidado para não mitificar. Palmares foi significativo por mostrar a capacidade de insurreição dos escravos, mas não no sentido de mudar as relações senhor/escravo. É preciso ter a coragem de dizer isso.
No jogo que levou à extinção da escravatura no Brasil, a insurreição de escravos só pesa verdadeiramente nos últimos anos. Só então se torna um elemento importante no jogo de forças das elites que vai resultar na Abolição. De outro modo se tornaria incompreensível –o que seria muito ruim do ponto de vista da defesa dos direitos da população negra –a Abolição ter sido feita a frio e o fato dos negros terem sido marginalizados. A capacidade insurreicional das populações escravas era socialmente baixa. Tem que se encarar isso com naturalidade.
Folha - Outra novidade no seu livro é a reconstituição de debates entre historiadores...
Fausto - Julguei importante colocar a controvérsia historiográfica para ajudar o leitor a entender que não há nenhuma possibilidade de reconstituir o passado enquanto tal. A história é sempre uma construção, ainda que não seja arbitrária, pois procura a objetividade através do controle e da análise das fontes. Dependendo da maneira como tais fontes são interpretadas surgem visões distintas, trazendo a marca da concepção do historiador e também do tempo.
Folha - Em que medida o seu livro aproveita o material de histórias regionais, distintas de uma história centrada no eixo Rio-SP?
Fausto - Estive, na medida das minhas forças conscientes, atento a essa questão. Não sei se consegui inteiramente, mas tive a intenção de fazer uma história que não fosse vista excessivamente a partir do Centro-sul, da região que se transformou no eixo dinâmico da economia nacional a partir dos fins do século 19. Certamente, não é o caso de fragmentar a explicação do país, mas a compreensão fica muito mutilada se não se entender que o centro vira periferia, como no caso do Nordeste, e que a periferia vira centro, como no caso de São Paulo.
Folha - O seu livro procura dar conta da história mais recente...
Fausto - Foi uma tentativa de escrever uma história do princípio ao fim –dos tupi aos tucanos. A concepção superada de que não se pode escrever a história de períodos muito recentes porque falta distanciamento tem uma dose de verdade, mas tem também uma parte de inverdade. Hoje, por exemplo, vê-se o movimento de 1964 sob uma ótica muito mais frutífera do que a ótica predominante imediatamente após 64.
Com relação ao presente, senti toda a pressão de uma história brasileira que vai a mil. A chave que encontrei para expressar essa variação foi fornecer o mês e o ano, tal a imponderabilidade da história brasileira.
A parte que dedico à história colonial é muito menor do que a que dedico ao período subsequente. Isso não significa de modo algum uma desvalorização da importância das raízes do Brasil. Desenvolvi os processos explicativos do Brasil Colônia e entrei um pouco mais na minúcia das coisas em períodos mais recentes, dando maior ênfase à história política, porque, afinal, o leitor está mais preocupado com o presente. O General Geisel tem, para nós, mais importância do que um vice-rei perdido no tempo.
Folha - O livro termina com o impeachment, um movimento histórico em que a sociedade civil tem um peso maior. isso indicaria um saldo positivo?
Fausto - Os fatos recentes são motivadores de otimismo, notadamente o impeachment do Collor. Depois disso as razões de um otimismo moderado só cresceram. Digo otimismo moderado, porque os riscos e as dificuldades serão grandes, há uma série de entraves no caminho da reformulação do país, mas acho que a própria escolha do presidente já demonstra um avanço enorme.
Folha - Em se tratando de grandes explicações, o que o seu livro, em particular, e os historiadores do Brasil, de modo geral, têm a dizer sobre o presente?
Fausto - A minha visão da história, que compartilho com alguns outros historiadores, rejeita a idéia de uma história mais ou menos imóvel, pois julgamos que ela não conduz a uma compreensão melhor do presente. Esse discurso de que no Brasil ainda perdura de algum modo a situação colonial, essa coisa bem ao gosto do populismo brizolista, não vai muito longe.
Outra visão que nos impede de ir mais longe é o eterno discurso de que as elites sempre dominaram e fizeram a história brasileira. Não quero dizer com isso que essas afirmações não tenham uma parte de verdade. Mas elas são tão genéricas e gerais que acabam recaindo na tese incorreta de que o Brasil realiza uma espécie de "viagem redonda", chegando sempre ao mesmo ponto.
Apesar de sermos uma sociedade fortemente excludente, onde a escravidão teve um peso muito grande, somos uma sociedade em que em meio a todas essas marcas profundas de desigualdade e de exploração, muda bastante. Para entender o presente é preciso entender as mudanças dessa sociedade.
Estou convencido que o peso do passado, inclusive cultural, no sentido amplo do termo, tem muita pertinência na explicação do país. Além da manutenção de práticas cotidianas e políticas, existem alguns males que perduraram ao longo da nossa história, como a baixa participação política, a dificuldade de constituição dos partidos, etc.
Mas, ao mesmo tempo, a história mostra que o país mudou muito. O Brasil dos fins do século 19 até os dias de hoje, do ponto de vista econômico, cresceu extraordinariamente, gerando uma base material muito diversa daquela de cem anos atrás. O avanço da industrialização, dos serviços, as mudanças sociais impostas pela imigração e depois pelas migrações dão ao Brasil de hoje a envergadura de um país que se tornou –para valer-me de uma frase do presidente eleito– um país muito menos subdesenvolvido e muito mais um país injusto.
Continua à pág. 6-6

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