São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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O Brasil precisa de sangue

DALTON CHAMONE

Não houve muitas razões para se comemorar, em 25 de novembro último, o Dia Internacional do Doador Voluntário de Sangue. A doação de sangue nunca foi nenhum motivo de orgulho para o país. O perfil do doador brasileiro está longe de parecer-se com o do europeu. Na Europa, doa-se sangue de forma voluntária e altruística, independentemente de quem seja o receptor. No Brasil, a doação é vinculada a um destinatário específico. O sangue é transferido para as veias de um parente ou, pelo menos, de um amigo.
Existe, lamentavelmente, uma falta crônica de doadores de sangue no país. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que a porcentagem de doadores seja de 2% da população. O Brasil atinge hoje uma taxa de 0,7%. Trata-se de uma aritmética de resultados vergonhosos, comparada à de países como a Holanda e a Finlândia, que alcançam, respectivamente, porcentagens de 6% e acima de 8%.
O egoísmo dos segmentos economicamente mais favorecidos, normalmente em melhores condições para doar sangue, também é exemplar. A maior parte dos doadores brasileiros, mesmo aqueles ligados a doentes de hospitais privados, provém de classes mais baixas. Segundo os dados do Instituto Gallup do ano passado, 65,5% dos doadores de São Paulo são das classes C e D.
Esse quadro constrangedor parece ser decorrente de um problema cultural. Ao contrário da Europa, o Brasil nunca passou por guerras e grandes catástrofes. Na Europa, a cultura de guerra provavelmente ampliou a tradição de doar sangue voluntariamente. O papel do sangue como salvador de vidas parece ainda pouco claro na cabeça do brasileiro. É verdade que já existem algumas iniciativas elogiáveis para reverter essa situação.
O Ministério da Saúde, por exemplo, está lançando uma campanha nas escolas primárias com o objetivo de chamar a atenção das crianças para a importância de doar sangue. Também foi firmado na Fiesp um convênio com a Fundação Pró-Sangue para estimular os trabalhadores a doarem sangue.
A doação traz embutidos muitos benefícios, uma vez que funciona indiretamente como um excelente avaliador da condição física, identificando possíveis anemias, hipertensão arterial, infecções e doenças imunológicas.
É evidente que estamos mais adiantados do que no passado e, em certo sentido, até mesmo na frente de alguns países desenvolvidos. Nos Estados Unidos e na Áustria continua em vigor uma prática mundialmente condenável: a doação remunerada de sangue.
Na década de 60, a doação paga também rondou escandalosamente o Brasil, provocando um desastre de proporções incalculáveis. Bêbados e famintos, especialmente na Baixada Fluminense, chegavam a doar sangue várias vezes por mês em troca de dinheiro. No Rio de Janeiro, o maior banco de sangue já foi controlado por bicheiros.
Com a evolução das técnicas da medicina, a necessidade de sangue tornou-se ainda mais imperiosa. Os fatos merecem ser avaliados com profundidade. O doador brasileiro, normalmente vinculado a um doente por laços de parentesco ou de amizade, apresenta-se como uma pessoa aparentemente sadia. Porém, para piorar um pouco mais, em torno de 25% deste segmento é descartado devido a problemas como anemia, hipertensão, alcoolismo e outros.
O perfil do doador brasileiro deve, portanto, mudar, na esteira do modelo europeu. Todas as pessoas saudáveis e que não pertençam a nenhum grupo de risco estão em perfeitas condições de doar sangue até quatro vezes ao ano, sem nenhum prejuízo à saúde.
No dia em que a maior parte dos doadores encaminhar-se voluntariamente aos hospitais pelo menos duas vezes ao ano, sem estar necessariamente vinculada a um parente ou amigo, aí sim teremos motivos de sobra para comemorar, também no Brasil, o Dia Internacional do Doador de Sangue.

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