São Paulo, terça-feira, 6 de dezembro de 1994
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'Pax Brasileira' é deserto para jornalistas

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O Brasil já foi o inferno dos cientistas sociais e o paraíso dos jornalistas, meu filho. Você, que entrou agora na redação (como conseguiu emprego?, nenhum jornal admite mais, vários viraram bingo), não sabe o que foram os maravilhosos anos da crise Sarney-Collor. Manchetes rasgavam as primeiras páginas. Nós jornalistas éramos bajulados pelos políticos, que cochichavam com respeito quando passávamos: "Lá vai a imprensa!"
Escrevíamos sobre o caos do país, as picaretas na cabeça de Ana Elizabeth, o duelo dos irmãos Collor, a fuga de PC até a Tailândia, o impeachment entre tochas em Brasília, as CPIs, as piscinas de Canapi, a mãe de Collor até hoje vegetal no hospital, a caminhonete de Genebaldo (ahh, tantas memórias).
A Era Itamar, se não chegou a ser uma "Sexta-feira 13", sempre foi um filme B de suspense cômico, mistura de Hitchcock com os "Três Patetas". "Quem dará a gafe de hoje?", pensávamos sempre. Depois houve a vitória desta máfia de intelectuais hipócritas que se dissimulam nesta discrição francesa, nestes sorrisos compreensivos, nestes silêncios racionais. Quem pensam eles que são, Sartres?
Onde estão suas taras, todo mundo tem suas taras! (Desculpe meus gritos!) Foi nesta época que a angústia começou. Os repórteres voltavam com pífias notícias e eram humilhados pelos editores, os colunistas viram na angústia uma forma de assunto (a falta de assunto é o último álibi para a falta de assunto) e escreveram sobre o deserto de eventos que se avistava como uma miragem do nada. Mas não adiantou.
Os políticos eleitos teriam feito um pacto de silêncio? Nada acontecia. Iria o Brasil perder sua trajetória sangrenta de erros maravilhosos, seus festins de escândalos? Tentávamos levar os novos eleitos ao abismo de uma gafe, para a armadilha de uma parabólica, mas a visão de um microfone era o sinal de alarme. "Nada a declarar" virou uma senha. Só nos pingavam pálidas informações tipo "talvez eliminemos esta alíquota" ou "o porta-voz informará". Começamos a ver com terror que teríamos que sair da dualidade Brasília versus imprensa.
É o seguinte, meu jovem, durante 20 anos de regime militar tivemos a bênção do fascismo; éramos doces vítimas, santos quase. Nossa ignorância era ocultada pela condição de mártires dos censores, andávamos de cabeça erguida como Joanas D'Arcs, com um sorriso dolorido no rosto barbado, os baixos salários compensados pela missão "democrática".
Depois da abertura, tivemos a glória dos "crazy years", a década de sangue, a boca aberta da hiperinflação, a merda nacional explodindo dos bueiros, o brilho trágico das catástrofes opulentas (desculpe os excessos, mas despediram o copidesque). Durante esta cavalgada de paixões (sic), o país foi se reduzindo a dois pólos somente: Brasília de um lado e nós do outro.
Nos alimentávamos do Congresso e Executivo, nossa lanchonete era na Praça dos Três Poderes. Era uma boa vida, até a chegada desses malditos eleitos que resolveram parar com o show, canalhas! (desculpe, mas dói, dói...) Vimos aterrados que teríamos de "interpretar" os fatos, mas o poder não nos dava mais pistas. As manchetes começaram a soar duvidosas: "Presidente admite considerar hipótese" ou ainda "Imposto, quem sabe, talvez caia este ano".
Chegamos ao cúmulo de cabeçalhos como "Que quer afinal o Banco Central?" Isto criou uma angústia existencial nos redatores, que se aferravam em indícios mínimos de notícia, tipo "Tremor de pálpebra de Bacha talvez denote subida da inflação" ou "Muxoxo de FHC prenuncia fim do IPMF".
As fontes começaram a ser extorquidas com ameaças de repórteres em prantos falando em "leite das crianças".
A inventividade das empresas foi grande e, depois da era dos brindes (chegamos a encartar baralhos de tarô, álbuns de figurinhas), inventamos a época do jornalismo interativo: "Você decide, leitor, haverá ou não mudança no ministério?" Inventamos a "notícia oculta", tipo "Onde Está o Wally?", premiando o leitor que encontrasse nas fotos, digamos, alguma mudança no xuca-xuca do ministro Fulano.
Senti o prenúncio disso ainda na Era Itamar, com a pesquisa "Quem será a amiga de June, aquela de biquíni cavadão na piscina do Jaburu?" ou a notícia "Malan gargalha", seguida do desmentido formal do ministro: "Eu não gargalho". Ali eu já pressentia o perigo. Chegamos depois à humilhação das "lojas de notícias", com sórdidos lobbistas e "insiders" cobrando altas taxas por uma notícia bombástica.
O pior é que a bosta do país (desculpe!) estava melhorando, inflação quase zero, e aí fomos ficando reduzidos a rídiculas boas notícias como "Primavera chega em São Paulo" ou "Xuxa volta para Miami".
Os jornais se encheram de articulistas do nada (como este que eu virei, ai de mim), uma gentalha que ronda as academias e enchem páginas com textos tipo "beijei-te com furor à luz da Lua"... Veja o lixo dos títulos: "A expressão fisionômica das serpentes", "Cerâmica marajoara, esta desconhecida" ou "O Ser e o Nada - questão de mercado".
Os jornais variavam entre o "marron" e o "chic", entre a traveca assassinada no Edifício 14 Bis ("Bujão de gás esmaga Shirley Suely") e o súbito sucesso das colunas sociais devassando sem piedade a vida dos socialites, numa fúria de "fait-divers" finos, tipo "Beatrizinha Fontenelle deu sim para Fabrizio Pontecorvo" ou "Banheiro dos Fontoura era só pó, petutinhos caem de nariz no mármore de Carrara" ou ainda "Delicioso flagrante: adultério na r. Escócia –corno aliviado abre caixa de Krugg".
Isto já dura anos e o que era espetáculo virou "administração do possível". Hoje parece que estamos na Suíça, com páginas chatas. Os repórteres não são mais voyeurs dos políticos (alguns até já estão carentes de luzes, como denota o recente striptease do ministro da Integração Regional no Piantella, sob o bocejo dos fotógrafos).
Mas isso vai acabar, meu jovem; as próximas eleições vêm aí. Os populistas voltarão. Ouvi dizer que Quércia está bem nas pesquisas, Brizola depois da plástica, sei lá... Vai melhorar... Mas você desculpe que eu tenho que entregar a manchete de amanhã, vê se está boa: "PT tenta nova aliança com PFL".

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