São Paulo, quarta-feira, 7 de dezembro de 1994
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Jessye Norman 'levita' no Municipal do Rio

JOÃO BATISTA NATALI
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

A soprano norte-americana Jessye Norman comprovou anteontem, com deliciosa consistência, que em definitivo já faz parte da história da música vocal.
Em sua primeira récita no Brasil –Teatro Municipal do Rio, com o mesmo programa que apresentará em São Paulo na sexta e segunda-feira próximas– demonstrou estupenda combinação de técnica e beleza timbrística ao navegar pelas melodias francesas de Ravel, spirituals ou canções espanholas de Manuel de Falla.
Confiram, por exemplo, seu desempenho da ária "Mon Coeur S'Ouvre á ta Voix", da ópera "Sansão e Dalila", de Camille Saint-Sãens (1835-1921).
A solução corrente consiste em dar às palavras de amor um superlativo monossêmico, como se Dalila não passasse de uma das sofridas heroínas de Verdi. A ênfase nas sílabas tônicas exige então tal dispêndio de energia que a cantora se refaz por meio de uma aspiração aflita. Escorrega-se no melodrámatico e se cai de bumbum na demagogia lírica.
Poucas sopranos reúnem inteligência para evitar a armadilha. Há Christa Ludwig e, no mesmo papel, a hoje esquecida Rita Gorr. Jessye Norman também tem carteirinha desse seleto clube.
É uma artista madura, capaz de controlar todas as variantes técnicas que separam o magistral da banalidade. Ouvi-la pessoalmente permite também descobrir o quanto os CDs são injustos com seus graves de "mezzo" e enfatizam seus agudos em excesso.
Vejamos as "Cinco Melodias Populares Gregas", de Maurice Ravel (1875-1937), também no programa. Quem canta, com impecável perfeição nos contrastes, é a praticante obsessiva das inflexões do idioma francês, tal qual o aprendeu com o professor e barítono Pierre Bernac.
Jessye Norman desacelera no "pianíssimo" para dar maior audição a seu magnífico timbre (é a mágica das vogais longas) e por vezes acelera a cadência (em "Quel Galant!", por exemplo), como se para implodir a poética musical. Nem a mezzo espanhola Teresa Berganza, doutora nessa partitura, faria melhor.
Outra surpresa está na maneira pela qual, a exemplo de raríssimos casos como Maria Callas ou Kirsten Flagstad, Jessye Norman "pesca" determinadas notas agudas por meio do lançamento da rede de sua voz á altura de uma outra nota em pouquíssima coisa mais grave, sem que na milimétrica operação haja o menor comprometimento da harmonia.
É o caso de "Les Chemins de L'Amour", valsa de Francis Poulenc (1899-1963), e também de "Je te veux", de Erik Satie (1866-1925), bem-humorada peça valseada que o cancioneiro francês de cabaré do início do século provavelmente inspirou.
Resta saber a razão que levou tantas qualidades de intérprete a confluirem para uma única pessoa. A resposta, além do talento, encontra-se no aprendizado baseado num repertório para o qual a música é mais que que o encontro da voz com achados melódicos.
Como desdobramento do vocal, Jessye Norman acaba por exibir uma delicada e rigorosa teatralidade. Os gestos são belos como o timbre. Dá a impressão de que aquela pesada massa humana mal toca o chão com as pontas dos pés.

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