São Paulo, terça-feira, 20 de dezembro de 1994
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Juízes trazem os bons tempos de volta

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A festa começou com uísque improvisado, mas logo o champanhe explodiu. O presidente olhou sua taça gelada e, através dela, viu a euforia dos amigos. O bigode do advogado Evaristo de Moraes voava pela sala como um pássaro peludo, entre risos, gritos, os cabelos cacheados de Claudio Vieira e as amigas-chanel de Rosane. Empregados negros enxugavam lágrimas no avental ("ê... ê... sinhá... os bons tempos voltaram!...").
Collor foi até a beira do lago e, com o charuto, acendeu os fogos. As grandes lágrimas prateadas encheram os céus de Brasília. Ele próprio não entendia porque fôra absolvido pelo STF.
"Como o próprio Sidney Sanches me absolveu?" Sua vida era um enigma para ele mesmo, a mãe-vegetal, o irmão com tumor, tudo parecia irreal, quando um perfume o envolveu. Era "Femme", e ele sentiu o corpo de Rosane se encostando nele. As lágrimas prateadas escorriam no céu e no rosto de Collor. "Que houve? Querem me enlouquecer? Me perdoam agora? Por quê?"
"Meu amor...", disse a voz aguda de Rosane, que tanto lhe irritava nas noites de gamão, mas que agora lhe soava doce. "Meu amor... você foi banido sim, mas isto foi 'política'. Existe uma coisa mais funda que nos penetra como um perfume, uma coisa maior que o impeachment, que tudo. Este perfume se evolou do STF e veio te abençoar!"
Collor estranhou o tom sábio da mulher. "Que houve com ela?", pensou. "Está falando..." "Meu bem... existe um fluido mais fino, invisível como éter, que os une para além da lei, da ética, da razão; é o mesmo éter que ungiu os juízes que te perdoaram e no qual suas vidas foram fabricadas. Eles nadam neste líquido amniótico, nesta sopa da vida brasileira profunda. O mesmo leite primal que te amamentou foi que deu a eles o diploma, a beca, a dignidade e depois a toga suprema do STF."
"Eles têm uma ideologia especial que nasceu dos fundos da Colônia, um brasão narcísico tecido de latim, de citações graves e carrancas severas, que usam durante anos como escudo para os arreglos jurídicos e chicanas em porta de cadeia. Depois, se refinam nos grandes macetes do cotidiano fiscal alucinado do Brasil, até que um dia se alçam a um negro olimpo de mármore de US$ 200 milhões e aí estão além da vida!"
Collor olhava espantado o súbito estalo de Rosane. Aos berros, os amigos agarram Vieira, que esperneia entre tesouras. "Corta!", "Corta!", eram os gritos. Risos de garçons e copos quebrados. Vieira pulava como um sapo, enquanto seu rosto ganhava um "chanelzinho".
"Veja", continuou Rosane, "o fluido de que eu falava é da mesma safra que rega estes doces cafajestes imemoriais, são vinhos da mesma pipa ancestral e, naquela dignidade negra dos juízes, você encontrará a mesma uva que criou estes queridos moleques."
"As capas negras escondem muito. Você já viu a decoração da sala do Sidney Sanches? Este fluido percorre o país; é o nosso caldo patrimonial. É a coisa-mãe, prototudo, que faz nossa história imóvel há quatro séculos. Vai ser o maior obstáculo ao FHC. Você perdeu tudo, você é nosso 'tiradentes-hermés', mas uma coisa você não perdeu: este perfume que nos banha."
"Mas por que PC pegou cana?"
"Ele é pardo. Já viu as barbas cerradas dos seus irmãos coragem? Na Colônia, eles serviam a mesa, abocanhavam cargos nos paços e lambiam borzeguins; para eles não há perdão. Nem para Rosinette, pobre fâmula cumprindo ordens. Você não. O impeachment, tudo bem, porque você foi pior que a encomenda, querido, desculpe, mas escancarou os vícios ancestrais, virou sociologia. Mas daí a botarem você fazendo tamanquinho na colônia agrícola com o PC? Nem pensar."
"Você pergunta porque te absolveram? Ora, eles se amparam na letra da lei, no olimpo dos códigos, no fundo negro dos 'vademecums', no grande intestino que os liga desde Cícero, passando por Ruy Barbosa até o negro bigodão do Evaristo!"
Gargalhadas ecoavam com Vieira imitando veado de cabelinho curto. Collor de boca aberta. Ao fundo, mais uma lágrima dourada caía no ar.
"O poder não se explica, amor. Eles sabem disso. Eles precisavam reafirmar uma ilógica para nos fazer perplexos. O que eles ganham com isso, debaixo de tanta porrada dos jornais? Ganham muito. Ganham mistério, inacessibilidade, negro adejar de asas, distância de nós mortais. Em seus olimpos vitalícios, eles gozam de uma mordomia maior: nossa palidez quando eles passam, nosso medo, nossa humilhação de ignorantes."
"Um monstro ameaça o Brasil, amor, sabe qual é? O monstro da Opinião Pública e, por incrível que pareça, você despertou este monstro. Eles temem o monstro da Opinião Pública; não esta que esbraveja hoje nos jornais contra a absolvição. Eles não temem esta ira passageira. Eles temem esta coisa nova que surgiu no país, a que se dá o nome terrível de 'sociedade civil'. Isto eles temem, muitos outros temem, grandes fortunas temem; eles temem, pois a lei é o seu latifúndio. Você não leu Kafka?"
A taça caiu da mão de Collor, com o brilho de Rosane. "A opinião pública anda muito atiçada. É necessário reafirmar poder. É preciso calá-la nem que seja pelo não-entendimento. Estes juízes são apenas o pelotão etéreo da grande guerra que virá aí contra a modernização, um Exército de elites agrárias e urbanas, xoguns de seculares poderes, tudo se levantará contra o novo tempo."
"FHC vai ter de armar a opinião pública contra isto. Fique tranquilo, amor, você perdeu só o poder temporal; mas o poder imemorial que faz a vida doce e louca não perderemos nunca!"
Claudio Vieira vinha correndo, tropeçou e caiu no lago, de porre, gritando: "Cadê a grana para pagar a Operação Uruguai? Aha!... aha!" Collor, perplexo, viu Rosane retrucar: "Oxente! Vamos comer uma moqueca de siri mole que amanhã a gente pesca ele de jet ski!"
Tudo voltara ao normal. Collor bebeu o champanhe e sorriu.

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