São Paulo, sexta-feira, 23 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crianças merecem sacrifícios do Natal

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fazer compras de Natal é mais do que uma chateação passageira. A atividade pode ser vista como verdadeiro inferno –lugar onde se juntam o sofrimento do corpo e o desespero da alma.
Não é apenas o estacionamento do shopping center que impõe desconfortos, nem o calor de dezembro, nem as filas, o acotovelamento, a pressa: o pior é que, com toda a pressa que tenho, perco tempo. Perco tempo hesitando a cada compra. Será que Fulano vai gostar deste aparador especial para pelos do nariz? Será um binóculo o presente ideal para minha afilhada? Precisará Evaldo de um pijama? Tio Odacir gostará deste modelo de tênis? Mas qual o número que calça tio Odacir?
Dúvidas e mais dúvidas, tempo e mais tempo, pressa e mais pressa. Até que, no dia de Natal, os presentes que recebo e que dou se mostram como prova do mais absoluto bom senso, da mais respeitosa prudência. Ninguém se arrisca com telescópios, estatuetas, cartolas, passarinhos, saxofones.
O que, de um lado, é certo. Camisas sempre servem, bombons sempre se comem, flores sempre murcham, e o Natal sempre passa. Mas talvez exista uma poesia nos presentes errados, nos presentes inúteis que recebemos de vez em quando.
É difícil que um presente de Natal venha a realizar o milagre de um contentamento completo. Teoricamente, o pacote embrulhado que ganhamos deveria servir como resposta a uma necessidade: eu estava precisando de um abajur, você adivinhou, obrigado.
Mais milagroso é o presente que descobre uma necessidade que tínhamos, mas não sabíamos que tínhamos, um luxo que gostaríamos de ter, mas não pensávamos em comprar: máquina doméstica de café expresso, espanta mosquitos eletrônico, sauna caseira, revólver 38.
Mas o presente pouco original é sempre útil. O presente original pode ser um tiro na mosca ou um tiro pela culatra.
Para as crianças, a coisa é totalmente diferente. Elas sempre sabem o que querem, sempre são precisas no que esperam. Às vezes querem demais; mas sempre estão precisando até mesmo do que não queriam. Não distinguem, a não ser por capricho, entre luxo e necessidade –distinção que estraga a maior parte dos presentes trocados entre adultos.
Na indigência material em que vivem, as crianças aceitam qualquer presente. Podem até deixar de lado o brinquedo idiota que ganharam: mas foi, de qualquer modo, um presente; não foi mera formalidade adulta, mero ritual de troca.
É por isso que se diz que Natal é muito chato, Natal é um problema –mas as crianças gostam.
Certamente, o Natal não sobreviveria se não fosse o gosto das crianças em ganhar presentes. O resto é subproduto: os presentes que se trocam no amigo secreto do escritório são tentativas, na maior parte das vezes patéticas, de infantilizar uma relação profissional entre adultos; de tornar a afeição cotidiana –que existe– em afeição excêntrica, em descoberta de afinidades, em festa que se desembrulha entre grandes risadas e pequenas decepções. Disneylândias de fim de ano.
É assim que o Natal só serve para as crianças –que nada sabem de etiqueta e regras retributivas, que esperam mais de um presente do que o mero recheio da convenção presenteante.
O filósofo Alain (1868-1951) escreveu belas páginas, sem pieguice, a respeito do Natal. Uma de suas idéias é que o mais bonito, no ritual de dezembro, é ver os três reis magos se ajoelhando, com presentes, em face do menino Jesus na manjedoura.
É como se o Poder se curvasse, imagina Alain, frente à pureza e à espiritualidade. Não sei se é o caso de se chegar a tanto. Mas os sacrifícios do Natal nos shopping centers, o trabalho de presentear os outros, têm algo dessa humildade, sempre renovada, que dedicamos às crianças.
Alain fala de outra coisa. No hemisfério norte, o Natal corresponde mais ou menos à noite mais longa do ano. Ou seja: depois da noite de Natal, as noites começam a ficar mais curtas e, embora o inverno aguce em janeiro e fevereiro seus rigores, na verdade já decresce. Não é à toa, então, diz Alain, que o Natal seja uma festa de esperança e de alegria: os astrônomos coincidem nesse ponto com os padres ao ver, em pleno inverno, prenúncios de vida e renovação.
No meio de um congestionamento, com uma lista interminável de presentes a comprar, lembro-me de Alain e procuro consolar-me: em cada presente errado ou certo que eu compre há algo de infantil, há homenagens à memória católica ou pagã, há forças de renovação –mesmo que, depois de empanturrado com doses imensas de peru e panetone, depois de decepcionado ou surpreendido com os presentes que eu próprio recebi, não pense mais nisso. Não faz mal.
A criança –toda criança é um deus– ganhou seus presentes. Merece. Nós também.

Texto Anterior: Cristãos sofrem em cinemascope
Próximo Texto: Oficina mostra 'A(u)to Eró(t)ico de Natal' ;Santinho
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.