São Paulo, sexta-feira, 23 de dezembro de 1994
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'Senhora dos Afogados' volta ao som de boleros

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Ao contrário do que por muito tempo se acreditou, Nelson Rodrigues, como Shakespeare, não exagerava. Se tantas outras provas não existissem, bastaria lembrar as desditas da família Collor –puro Nelson, puro Shakespeare. Míticas desditas, diria o crítico e agora imortal Sábato Magaldi, comparando-as às tragédias rodriguianas enraizadas em conflitos imemoriais, como "Álbum de Família" e "Senhora dos Afogados", a "Oréstia" carioca, da qual fazem parte ainda "Anjo Negro" e "Dorotéia".
"Álbum de Família" muitos conhecem, "Anjo Negro" voltou à cena, no início desse ano, sob a direção de Ulysses Cruz. Já poucos viram "Senhora dos Afogados", proibida pela censura entre 1948 e 1954 e longe dos palcos desde sua primeira encenação, há 40 anos. Aderbal Freire-Filho acaba de ressuscitá-la no Teatro Carlos Gomes, por coincidência o mesmo onde Nelson estreou seu primeiro texto dramático, "A Mulher Sem Pecado", 52 anos atrás.
Em curtíssima temporada pré- natalina (hoje é a última noite), a montagem entra de novo ao cartaz no próximo dia 5. Vale a pena ver o espetáculo, apesar de suas evidentes imperfeições: alguns intérpretes não estão à altura dos seus papéis; a iluminação, ao menos na noite de estréia, sábado passado, me pareceu paupérrima; a performance dos figurantes não só sobrepuja a dos protagonistas como imanta o olhar e os ouvidos da platéia, amortecendo a força e o impacto do texto.
É um texto difícil –para alguns, o melhor do autor. Glauber Rocha esquivou-se de adaptá-lo ao cinema, 30 anos atrás, por considerá-lo "autoral demais". Convidada pela Companhia Dramática Nacional para dirigir a única montagem profissional da peça, Henriette Morineau disse não e foi substituída por Bibi Ferreira. Em São Paulo, malgrado o empenho de Ziembinski e outros, ninguém se aventurou a encenar as desgraças da família Drummond. "Muito fortes para a mentalidade paulistana", alegaram os hipócritas de plantão.
Com quatro assassinatos (apenas um em cena), um duplo (senão triplo) caso de incesto, três fratricídios e uma amputação, "Senhora dos Afogados" não é mais "forte", exagerada ou chocante que as tragédias gregas e as de Shakespeare –para não falar das que diariamente despontam nos jornais. Não obstante, por razões de marketing, Nelson a definia como "pestilenta" e "fétida", capaz de "produzir o tifo e a malária na platéia". Na verdade, produziu apenas indignação quando encenada no Teatro Municipal do Rio, em 1954. "Tarado!", uivaram alguns espectadores. "Burros!", devolveu o autor, do próprio palco aonde fora em busca de aplausos, que até houve, diga-se, entre um e outro grito de "gênio!". O francês Jean-Louis Barrault, de passagem pelo Brasil, encantou-se com a peça.
Freire-Filho, ao contrário de Antunes Filho, respeitou o senso de humor de Nelson, deixando o "expert" Ruy Castro feliz da vida. Talvez tenha exagerado na composição, algo histriônica, do coro e certamente errou na caricatura a que ficou reduzida a personagem da avó, mas a manutenção do humor é sempre um ganho em qualquer montagem de Nelson.
Ao usar como pano de fundo algo parecido com uma ilustração de "Vinte Mil Léguas Submarinas" (o mar é um elemento vital na peça), Freire-Filho desliga um pouco a peça de seu referencial original ("Senhora dos Afogados" é uma paráfrase de "Electra Enlutada", de O'Neill), sem no entanto nos deslocar para o universo de Jules Verne ou de outro que tenha feito do mar o único túmulo digno de seus personagens. Musicada, sobretudo com boleros (tema principal: "Historia de un Amor"), ficou ainda mais distante de O'Neill –e mais perto de Brecht & Kurt Weill. Ao dar à peça novos precursores, Freire-Filho distendeu as raízes do teatro de Nelson. Isso, em princípio, é um elogio.
Peça: Senhora dos Afogados
Onde: Teatro Carlos Gomes (Praça Tiradentes, s/nº, tel. 021/242-7091)
Quanto: R$ 10

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