São Paulo, sexta-feira, 23 de dezembro de 1994
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Blier olha vida nos subúrbios com agudez

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: Um Dois Três Sol
Produção: França, 1992
Direção: Bertrand Blier
Elenco: Anouk Grinberg, Marcello Mastroianni, Olivier Martinez
Onde: a partir de hoje no cine Belas Artes/sala Mário de Andrade

O filmes de Bertrand Blier costumam ser, com frequência, sucessos de estima. Tem sido assim desde "Os Corações Loucos" (Les Valseuses, 1973) até "Bela Demais para Você" (Trop Belle pour Toi, 1988), passando sobretudo por "Meu Marido de Batom" (Tenue de Soirée, 1986).
Mas, pessoalmente, é muito mais fácil dizer sobre eles palavras de respeito do que de amor. Blier tem construções inventivas, dirige atores muito bem, evita os tiques do cinema "de qualidade".
Ao mesmo tempo, não foge à escrita de praticamente todo o cinema francês pós-Nouvelle Vague: não busca –quase evita– uma linguagem universal, em proveito de certas características nacionais.
Na verdade, todo o problema para o espectador é entrar no ritmo da história de Victorine, garota de subúrbio que ora é uma criança, ora uma adolescente, ora mãe de família –não necessariamente nessa ordem. Ela tem um pai alcoólatra (Mastroianni), uma mãe indigesta. Ambos morrerão, durante o filme. Mas aparecerão vivos mesmo após sua morte.
A cronologia não é uma preocupação de Blier. Pode-se dizer quase que é o inverso: buscar conexões lógicas entre as coisas, em lugar da sequência cronológica da narrativa clássica, é quase uma preocupação dominante do filme. Ela tem a vantagem de construir um quadro realista, evitando isso que se chama de representação naturalista.
E tem um inconveniente. Tão grande é o cuidado de não fazer um novelão que por vezes o espectador esquece o filme e fixa sua atenção nos esforços do diretor para construí-lo tal qual construiu.
É um efeito colateral do intelectualismo do cinema francês que, no caso, rebate diretamente na estruturação do filme.
Mas seria injusto ver as coisas só por esse ângulo. "Um Dois Três Sol" pretende –e consegue– mostrar a vida em um subúrbio pobre, com suas categorias tristemente triviais: violência, embrutecimento, alcoolismo, desemprego, pobreza, ausência de auto-estima. As imagens têm uma força impressionante, em boa parte porque não são feitas para impressionar quem vê o filme, mas sim para mostrar.
E o que se vê está estreitamente ligado a uma crise européia, tanto econômica (o desemprego é um flagelo), como cultural (ausência de perspectivas) e de identidade (os imigrantes já não sabem quem são, mas os autóctones também não, pois sentem-se invadidos pelos estrangeiros).
Nesse sentido, o filme de Blier conecta com certa facilidade o espectador brasileiro. As questões econômicas e culturais que aborda são parentes de algo que se vê por aqui com muita frequência.
É verdade que essa degeneração da vida, na França, é quase perfumaria perto do que acontece aqui. Mas a analogia é visível e as diferenças são de intensidade, não de natureza. Essa proximidade não desfaz a impressão de que Blier é um diretor a caminho de algo que ainda está por descobrir.

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