São Paulo, terça-feira, 27 de dezembro de 1994
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1994 pode ter sido o fim da ópera bufa

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O que aprendemos em 1994?
1 - Os últimos dez anos abalaram esta coisa que temos dentro da cabeça chamada Brasil. Desde 1984, estamos aprendendo novas realidades até que, em 94, foi tudo acelerando feito final de filme de ação. Nunca vi ano tão rápido.
Quem nos ensinou? Ninguém. As coisas, os acidentes de percurso, os loucos atores do pastelão didático: Collor, Alves dos Santos, PC, as CPIs, tudo. A santa loucura de dez anos. FHC inventou um novo país? Não; um novo país inventa FHC. Impressão de nova era. Será? A sensação de óbvio descoberto, de que o abstrato virou concreto.
2 - Diminuiu nossa vocação para o "não". Portugueses endêmicos, sempre cultivamos a impossibilidade por um lado e a vertigem da utopia por outro. Achávamos linda a derrota de d. Sebastião se perdendo na mesnada de mouros e esperávamos sua volta triunfal envolto em luz. Nem uma coisa nem outra.
Perdemos um pouco o gosto de amar fracassos. Erramos tanto, de 1984 para cá, que houve um indigestão de fracassos. Sempre tivemos pânico do êxito. A vitória pressupõe manutenção, ordem, e isto contrariava nossas almas melancólicas. Sempre fomos anglo-saxões de cabeça para baixo. Eles sempre lutam para ser conquistadores do oeste da alma. Nós, as sagradas vítimas. Barrocos sofrimentos de olhos para cima, Cristos cobertos de sangue. Ficamos um pouco mais "americanos".
3 - Não falamos tanto mais de Brasil como um todo. Temos muitos brasis, já sabemos. O parcial pode ser mais importante que o total. Fascinados pelo brilho impossível da utopia, tínhamos o tédio mortal do trabalho pequeno. O preço do chuchu pode ser mais importante que a "libertação dos oprimidos". A descoberta do detalhe em 94.
4 - Entra na cabeça do país um mundo mais movente. Um mundo de fluxos, dinâmico, mutante. Cessa a visão da era industrial com um centro lógico. Mesmo há três anos, ainda se pensava que haveria uma nova "ordem" mundial clara. "Pfuiii!!" O que há é um novo "caos" mundial, como um dançante Miró, um fremente Calder. E isso é bom. O liberalismo pode ser mais cruel, mas é mais próximo do nosso destino finito.
5 - Acabou a idéia de que "nós" construiremos o país. Não. Cabe a nós desbloquear o Estado, as corporações, as burocracias montadas para privilégios privados, para que o país progrida sozinho. O Estado como controlador de fluxos, não mais como pai ou mãe ou prostituta.
Surge uma antiga idéia que foi se espessando: a idéia de uma "sociedade civil".
6 - Termina a 1º de janeiro a Era Collor. A tragédia desta família foi a flor carnívora que se autodevorou em sacrifício no altar do patrimonialismo. A família nordestina autoritária, temperada pela educação cafajeste carioca, explode nos tumores do Pedro Collor, o bode expiatório nesta passagem para uma idéia ainda nevoenta de capitalismo.
Espantoso episódio haitiano, o "vudu", o sapo de macumba de Rosane seca um homem em 15 dias, quatro "mello-nomas" celebram uma vingança. Não mais uma família poderá controlar o câncer da sociedade.
7 - Ao invés de navegar os mares do "não", o intelectual que cultivou sempre a doce autocomplacência de ser vítima de um mundo mau descobre-se um ocioso, um vagabundo geralmente com pai rico ou com emprego público. 1994: o fim da punheta negativista, da boquinha de nojo, da feliz barbinha triste de bares marginais. O fim de negatividade fácil, da vítima honrada, dos vampiros da miséria.
Surge o intelectual–trabalhador em vez do intelectual–aventureiro. Surge a idéia de competência (outra coisa americana). A idéia do refúgio quentinho contra o mundo mau dá lugar ao desamparo diante do possível e do finito. O horror do fantasma cede lugar ao horror do Real.
8 - Aventura da razão, sim. Mas a antiga razão onipotente fica parcimoniosa diante do limite. A razão se curva diante da razão das coisas. Abre alas para as coisas, elas são maiores que nós. O PT não suporta esta ferida narcísica, de não ser o sagrado "sujeito da história" e perde a eleição. É de dar medo: Lula, genial inventor da esquerda pragmática que possibilitou a criação do PSDB, hoje é refém de ideólogos toscos do século 19.
9 - O universo paralítico do "mesmo" brasileiro, a lama ancestral dos interesses estão dando uma chance aos intelectuais revolucionários de 1960. Estão mortos os eternos donos do poder? Não. A miséria virou um arcaísmo de mercado. Pressionados pelo money-market internacional, a direita chamou os enfermeiros da esquerda como parteiros entre o passado agrário e o futuro capitalismo. Nossos senhores de engenho e nossos barões da indústria tiveram de acordar do sono perdulário e estatizante e chamaram os intelectuais para este parto. Antes, a pátria fisiológica era olhada pelo horror dos intelectuais. Agora, a competência "scholar" é vigiada pelo temor das elites. Que farão depois com eles?
10 - O mundo das coisas não dá moleza. Acabou o abismo previsível e começa um universo sem centro. A melancolia antiga nos dava a tranquila certeza do fracasso. Agora, estamos diante do medo do êxito. Que horror, felizes e mortais! De qualquer modo, acabou a ópera bufa e começa a verdadeira tragédia. Feliz 95.

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