São Paulo, sexta-feira, 11 de fevereiro de 1994
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'Rio 40 Graus' cria imagem real do Brasil

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: Rio 40 Graus
Produção: Brasil, 1954,55, 100 min.
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Elenco: Glauce Rocha, Jece Valadão, Roberto Batalin
Onde: hoje, às 21h, no Espaço Banco Nacional de Cinema

"Rio 40 Graus" ainda não é um filme do mestre que surgiria com "Vidas Secas" (1963). Em sua estréia (que abre a mostra "Nelson por Nelson", com sete filmes, co-pratrocinada pela Folha), Nelson Pereira dos Santos é, antes, o discípulo que traduz a estética neo-realista em termos brasileiros.
Longe de diminuir o interesse pelo filme, essa particularidade serve para intensificá-lo.
Tratava-se de mostrar a vida da gente pobre do Rio de Janeiro, numa espécie de crônica. Assim, o espectador notará a desenvoltura com que a câmera transita, em dado momento, de um grupo de crianças para um casal de namorados em litígio. O plano não muda; o espectador é levado de um foco de interesse a outro por um movimento de câmera, sem que a unidade do espaço seja afetada.
Não se trata de um procedimento "estético": tratava-se de, ao longo de várias histórias, criar uma visão única do Rio e sua gente. Nesse sentido, é um filme inaugural, um prefácio do Cinema Novo. O que o orienta é a necessidade de encontrar e fixar a imagem do Brasil (como Rossellini havia feito na Itália).
O segundo ponto é: que imagem é essa? À luz do que se transformou o Rio, em particular a favela, "Rio 40 Graus" parece um exercício de ficção científica: quem pode imaginar, hoje, uma favela delicada, inocente, em que o sonho dos garotos é comprar uma bola de futebol?
Talvez haja um quê de idealização nesse olhar (de um paulista que estava radicado no Rio há apenas dois anos). Mas nem tanto: se logo a seguir o cinema trataria as imagens em termos de aspiração (a construção do país, suas perspectivas), aqui é o momento de gestação pré-juscelista: um mundo ainda em aberto, em estado original (daí sua inocência). Com tudo por criar, Pereira dos Santos nos dá algumas imagens de uma beleza seca e singela.
É um de seus grandes trabalhos. Poucas vezes o Brasil terá se aberto tão plenamente à compreensão quanto através desse entrelaçamento de imagens e histórias em que o Rio (e por extensão o Brasil) se abre como um coração em busca de um corpo onde exercer seus sentimentos. O que este filme nos mostra é a soleira do moderno, o momento que precede a definição de um destino. É, por isso, uma obra dramaticamente atual.

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