São Paulo, sexta-feira, 11 de fevereiro de 1994
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Biografia bate e sopra no mitológico 'menino prodígio' Yehudi Menuhin

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Sir Yehudi Menuhin, o "menino prodígio" do violino, é quase um octogenário. Fará 78 anos em abril. Quando completou 75, o Channel Four, de Londres, homenageou-o com um documentário que escapou do enfoque hagiográfico que ele vinha merecendo desde que deu aos 5 anos seu primeiro concerto e gravou aos 10 o primeiro de seus 360 discos.
Menuhin continuou merecedor de deferências próprias a um dos grandes solistas deste século, ao lado de Heifetz, Kreisler, Oistrakh ou Perlman. Mas foi tamanho o empenho de cavocar episódios delicados de sua vida que era inevitável a aparição de um perfil conflitante com os mitos por detrás dos quais ele se protegeu.
A imagem do garoto nascido em San Francisco de pais russos, envolto na felicidade doméstica para o despertar de um descomunal talento, deu lugar ao adolescente reprimido ao extremo pela mãe, Marutha, isolado das demais crianças –ele se educou com professores particulares e nunca teve um brinquedo– e atrofiado em sua maturação. Aos 18 anos nunca havia atravessado uma rua sozinho e jamais desobedeceu instruções sobre a dieta alimentar ou exercícios físicos.
"Já era hora de tudo vir à tona", desabafou Menuhin quando o documentário foi ao ar, conformado com a exibição da imagem tomográfica de seus problemas mais íntimos. Uma imagem montada por Tony Palmer, que a partir de três anos de pesquisas e entrevistas também publicou um livro –"Yehudi Menuhin, Retrato de Família"–, agora editado pela Zahar.
Não é esta a primeira vez que Menuhin é biografado. Em 1956, o escritor Robert Magidoff completou uma primeira empreitada e em 1977 o próprio violinista publicou "Unfinished Journey" (Jornada Inacabada), com 400 páginas de relatos e confissões. Era inevitável, porém, que a autobiografia se mantivesse prisioneira dos mesmos tabus que foram agora delicadamente implodidos.
Um exemplo: ao se autobiograrar, Menuhin resume em não mais que 20 páginas seu primeiro casamento, em 1938, com a australiana Nola Nicholas, com quem teve os dois primeiros de seus quatro filhos. Ela partiu para o alcoolismo e o adultério. O colapso do casal –durante o qual teria ocorrido o verdadeiro ingresso dele na vida adulta– foi paralelo à aparição de uma relação menos cordial com seu instrumento. A inglesa Diana Gold, sua segunda mulher, procurou bloquear a queda de sua qualidade musical, a partir da década de 50.
Foi inevitável, mesmo assim, que o período de genial virtuosismo já estivesse encerrado. Menuhin, apesar da "alma" tensa de suas execuções, passou a saltar notas ou trocar a ordem das semifusas nas arcadas das partituras. Perdeu o antigo respeito junto aos músicos das grandes orquestras. Não teve renovado seu contrato com a EMI Records. Tornou-se regente, como forma de ainda manter sua relação passional com a música.
Moldado por Diana, o personagem generoso se torna voluntarista com relação a todas as causas das quais se aproximou. Defendeu o maestro Furtwangler e a Filarmônica de Berlim, quando ambos foram no pós-Guerra execrados pelo papel que tiveram como porta-vozes da cultura nazista.
Associou-se a aloprados com soluções mágicas para o Oriente Médio, encabeçou iniciativas ecológicas para salvar as borboletas das ilhas britânicas, o Saara na Africa e os Alpes suíços. Dirigiu o Conselho Internacional da Música (CIM), da Unesco.
E em meio a tudo continuou excursionando, mundo afora, numa cadência alucinante, com o Guarnieri (1742) no estojo. Nunca perdeu o pique atingido em 1936 (110 concertos em 63 cidades de 13 países). Em novembro próximo estará no Brasil. O público reverencia Yehudi Menuhin pelo mestre que ele continua sendo e pelo prodígio que um dia foi. Mesmo com suas imperfeições técnicas ele continua quilômetros adiante de um bem dotado spalla europeu.
O livro de Tony Palmer não abandona em momento algum a tonalidade carinhosa. O que é problemático na vida do virtuoso se tornaria grosseria biográfica se a linguagem fosse outra.
Para quem gosta de música erudita, o livro funciona ainda como um trajeto voyeurista que privilegia os grandes monstros em torno dos quais o violinista em algum momento gravitou. Lá estão Bartok, Elgar, Enesco ou Britten em carne e osso. A viagem à intimidade de Yehudi Menuhin –norte-americano de nascimento, britânico por naturalização, nobilizado por Elizabeth 2.ª e cidadão honorário da Suíça– se cruza a cada momento com os muitos caminhos da música.

Livro: Yehudi Menuhin, Retrato de Família, 241 págs
Autor: Tony Palmer

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