São Paulo, sábado, 19 de fevereiro de 1994
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Ataque ilegítimo, ilegal e ineficaz

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS

O conflito na ex-Iugoslávia está repleto de intentos genocidas e de atrocidades. Toma-se partido diante das imagens, certamente revoltantes, do presente, porém relega-se ao esquecimento a real equação de poder internacional e as lições que a história pode nos oferecer.
As democracias ocidentais criaram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em 1949, como resposta às ameaças advindas do Leste Europeu, sintetizadas pela ação do agora extinto Pacto de Varsóvia. Tais organismos de caráter militar, emblemas da bipolarização da Guerra Fria, com o seu final logicamente deveriam autodissolver-se.
A Otan, entretanto, parece estar ávida para encontrar novos objetivos que justifiquem a sua perenidade, ao lançar o absurdo ultimato diante do embate dos Bálcãs, onde não há atentado algum à segurança dos países do Atlântico Norte. Ora, segundo o artigo 5º de seu tratado constitutivo, a Otan é uma aliança militar defensiva, que só deve intervir, de forma coletiva, em resposta a ataques ao território de seus países membros, nos quais não se inclui a ex-Iugoslávia.
Mais do que ilegal, a intervenção é também ilegítima. A Otan reúne os países guardiões de uma injusta ordem internacional, definida pelas nações fortes e ricas, não sendo seu atributo a neutralidade ideológica.
Ratificar o ultimato é abrir uma porta para que a Otan transforme-se em um poder comum que, sob o manto do humanitarismo, tome para si a prerrogativa de apontar os inimigos da ordem mundial.
Quanto à eficácia da operação, é de se esperar que populações civis, inclusive muçulmanas, sejam atingidas. Os alvos, facilmente removíveis, encontram-se em terreno montanhoso, tornando remota a possibilidade de uma "ação cirúrgica".
No entanto, ainda que uma ofensiva militar pontual possa ser um êxito, os riscos de fracasso posterior são enormes, à medida que os Bálcãs foram ao longo da história o calcanhar de Aquiles da paz européia. Atualmente, utiliza-se a expressão "balcanização" para designar precisamente a fragmentação de territórios.
Esse processo tornou-se irreversível, na ausência da figura carismática de Tito que, no fim da Segunda Guerra Mundial, atribuiu unidade a tão diversos territórios, à época em permanente conflito.
A intervenção estrangeira, caso ocorresse, deveria ser aprovada no Conselho de Segurança da ONU, o que exige a anuência da China e da Rússia. Corre-se o risco de soldados da paz transformarem-se em guerreiros, mas este é o preço a pagar para que a ONU possa, através de um plano de longo prazo, conceder alguma estabilidade à tão conturbada região.
O isolado ataque militar da Otan, organização cujo passado é no mínimo questionável, não representa o consenso mundial e poderá provocar a reação de outros países que não a integram. O ultimato implica o alargamento do conflito, fazendo lembrar que a Primeira Guerra Mundial teve como berço nenhum outro lugar a não ser Sarajevo.

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