São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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O homem que escreveu a obra de Shakespeare

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

É absolutamente irrelevante, para conhecer a arte inglesa no período elizabetano, saber se foi ou não William Shakespeare (1554-1616) que escreveu o monumento dramatúrgico que lhe é atribuído. Qualquer obra tem sua própria eloquência, fala por si mesma e independente, para ser compreendida, de sua acoplagem aos componentes biográficos daquele que a produziu.
Mas a erudição mundana é um exercício divertido. A controvérsia sobre o suposto embuste cometido em nome do Shakespeare nascido em Stratford-on-Avon já rendeu, em dois séculos, perto de quatro mil livros ou panfletos e fornece momentos de um sensacionalismo histriônico. Dá para ler na praia com a ligeireza descompromissada das narrativas policiais.
"Em Busca de Shakespeare", de Irvin Matus e Tom Bethell, é um exemplo acabado – e culto – desse confronto de versões. Bethell é dos muitos que acreditam que o teatro atribuído a William Shakespeare tem como verdadeiro autor Edward de Vere (1550-1604), o décimo-sétimo conde de Oxford. Matus, ao contrário, acredita que Shakespeare foi Shakespeare mesmo.
São polemistas que representam, respectivamente, os "oxfordianos" e os "stratfordianos". Na história dessa longa polêmica foram apontados nada menos que 58 pretendentes à condição de "verdadeiro" Shakespeare. Uma das correntes que chegou a florescer, a dos "baconianos" (partidários de sir Francis Bacon) caiu em descrédito, embora tenha tido defensores mais ou menos assumidos do peso de Nathaniel Hawthorne, Henry James, Walt Whitman e até o mesmo Sigmund Freud.
Não é uma controvérsia acadêmica. As universidades do século 19 se entusiasmaram pelo assunto, mas as do século 20 acharam que seria mais útil procurar outras pulgas para se coçar.
Apesar dos pesares, perder tempo com o assunto faz certo sentido, que não é explicitamente fornecido nem por Matus nem por Bethell. É que se trata de uma maneira periférica de obter informações sobre a cultura inglesa no final do século 16 e, sobretudo, de dissecar preconceitos ainda hoje predominantes em qualquer enfoque sócio-cultural.
O principal desses preconceitos é a tecla evocada na catilinária dos exfordianos. Só um nobre, dizem eles, com a vivência de um cortesão do período Tudor, seria capaz de montar cenários com a sutileza dramatúrgica atribuída a William Shakespeare. Há em suas peças referências a tragédias gregas ou romanas na época não traduzidas em inglês. Ou ainda: só o conhecimento minucioso da Itália – o espírito renascentista ainda irrigava os bem-pensantes – levaria à construção de verossimilhanças de dramas ambientados naquele país.
Ora, diz em suma Bethell, Shakespeare era um simples plebeu, nada prova que soubesse grego ou latim e nunca teve dinheiro para atravessar o Canal da Mancha e se ilustrar com a cultura mediterrânea. O conde de Oxford, ao contrário, foi um poliglota, "favorito" da rainha, percorreu na juventude a Itália e vivenciou experiências reproduzidas com certa fidelidade em algumas peças atribuídas a Shakespeare.
A razão do embuste, prossegue o porta-voz dos oxfordianos em meio a dezenas de outros argumentos, está no fato de o teatro popular, em oposição às peças encenadas para a corte, ser na época socialmente desqualificado, o que teria levado de Vere a se acobertar por detrás de um ator que realmente existiu.
As coisas não teriam ido tão longe se não fosse por uma pesquisa iniciada em 1780 pelo reverendo James Wilmot, que rebuscou sótãos e porões nas imediações de Stratford, à procura de um único livro ou manuscrito autografado pelo próprio Shakespeare. Nada encontrou. Por sua vez, o testamento do homem Shakespeare não inscreve entre seus bens nenhuma biblioteca particular da qual pudesse sugar sua erudição.
Os Stratfordianos replicam por meio de Matus que tudo isso é irrelevante. A ausência de manuscritos autografados e inventários incompletos de bens são próprios a outros letrados contemporâneos. Afinal, os séculos se passaram e o apagamento de pistas detalhadas em nada fere a autenticidade de um personagem real que foi capaz de criar um universo maravilhosamente completo de personagens fictícios.
O pingue-pongue fundamentado na troca de suspeitas e respostas baseadas em suposições é no fundo cansativo e não é isto que torna o livro interessante. A leitura precisa se distanciar da literalidade quase judicial. Vale pela história – como as condições que permitiram a emergência do teatro elizabetano – e, sobretudo, pelo cômico apêndice que relata experiências mais ou menos desastradas de se autenticar poemas ou textos de Shakespeare com a introdução deles pelas goelas de um computador.

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