São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Retratos de Otto Lara Resende

MOACIR WERNECK DE CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Perfil, segundo o dicionário, quer dizer "contorno ou delineamento do rosto de uma pessoa, visto de lado"; também pode ser a "descrição de uma pessoa em traços mais ou menos rápidos". Mas no caso desta coletânea de textos de Otto Lara Resende – "O Príncipe e o Sabiá e Outros Perfis" – ambas as definições dizem de menos.
É um livro rico de matéria, para usar um termo das artes plásticas. Nesse sentido, alguns dos intitulados perfis se alçam a categoria mais nobre de retratos. São retratos penetrados de empatia, que não só nos restituem a figura do modelo em sua verdade essencial como também absorvem, aqui e ali, características próprias da personalidade do autor.
O livro de Otto Lara (1922-1993) lançado em meados de 1993 – "Bom Dia Para Nascer" – apareceu antes, mas é de elaboração posterior a este de agora. Reuniu pequenas crônicas de tamanho uniforme, 30 linhas, da sessão "Rio de Janeiro", na página dois desta Folha. A propósito, tive ocasião de escrever que ali estava um paradigma da literatura de alto nível produzida para o efêmero do jornal. Foi uma proeza do "grafomaníaco" confesso, a de dar o seu recado diário naquele espaço tão curto. Usou para isso de um recurso estilístico fora dos seus hábitos: a frase breve, quase telegráfica. Saiu-se esplendidamente.
Os perfis-retratos ora publicados em livro não sofreram no nascedouro uma limitação tão drástica de espaço, o que decerto lhes trouxe vantagem, pois Otto era naturalmente de vôo largo. Fazem pensar, entretanto, num outro problema que o afligiu permanentemente, pela vida afora: o do tempo. Tempo, mais importante que espaço. Tempo em todos os sentidos, do cronológico ao filosófico, este último relacionado com o conceito antigo de ódio como condição necessária para estimular as criações do espírito. Na minha convivência com o escritor-jornalista-conservador, sabendo daquela agenda sempre a transbordar, nunca cheguei a entender como ele podia fazer simultaneamente tanta coisa.
Este livro dá idéia da sua onipresença intelectual, da quantidade (e qualidade) da gente que frequentava, dos seus incessantes compromissos sociais e de trabalho. O que não explica é como Otto resolvia (ou não resolvia) o drama do tempo que lhe faltava para o tempo que tinha. Era capaz de gastar horas jogando conversa fora, ao vivo ou pelo telefone, máquina perturbadora, com ou sem gravador, para ele uma fonte de angústia tanto quanto de prazer. Sempre estava, ou se achava em falta. Se pegava o fone, não sabia largar. "Eu sou daquele tipo a quem não se pode perguntar como vai, porque respondo, explico, entro em pormenores", dizia.
Tinha dificuldade em interromper um diálogo ou deixar uma reunião, onde era solicitado pelo brilho de sua conversa (bom papo e bom copo aliás). Era "leitor compulsivo" de livros e jornais; estava sempre informado de tudo, a conjuntura e a história pregressa, o atacado e o varejo. Vida afora, teve mil empregos, trabalhou muitas vezes em dois jornais ao mesmo tempo, de onde o caso meio folclórico de que, numa briga dos dois, era ele quem escrevia os editoriais polêmicos no matutino contra o vespertino e vice-versa.
Foi testemunha ocular e participante de momentos decisivos da vida do país, entrevistou meio mundo, viveu anos no exterior; foi confidente das pessoas mais inesperadas, homens e mulheres, de todas as idades; cuidava da sorte dos doentes, consolava os aflitos, providenciava, comparecia, conversava, telefonava, telegrafava, escrevia cartas e bilhetes sem conta ("sou grafômano e epistológrafo, duas coisas abomináveis, há em mim um demônio epistolar", confessava. Não deixava um livro sem agradecer. É um milagre que ainda pudesse se dar à ficção, da qual nunca se afastou, embora mantendo com seus livros uma "relação neurótica": se entrava numa livraria e dava com algum, virava a capa para baixo. Dormia mal. Do seu permanente sufoco resultava uma insônia arrasadora, um cansaço que entretanto não o impedia de prosseguir no mesmo ritmo de sempre.
A qualidade de sua produção literária em jornais e revistas, dada à luz em meio a um constante atropelo, tem em "O Príncipe e o Sabiá" uma amostragem impressionante. São 60 artigos ou ensaios, organizados com carinho e competência por Ana Miranda, a partir de algumas indicações deixadas pelo próprio Otto e completadas por sua mulher, Helena, e filhos. Sobre as personalidades retratadas ele tem observações iluminadoras, na sua prosa cheia de verve e sempre com algum toque de humor, alguma picardia mineira, jamais grossa ou ofensiva.
Era de natural delicado. "Estou sempre operando na faixa da delicadeza", explicava. Sua crítica era mais insinuada que explícita, e dirigida ao bom entendedor; contudo, não lhe falta alguma pincelada a caracterizar o criticável num personagem de vida pública. É o que se vê em suas apreciações de Getúlio Vargas, Luiz Carlos Prestes, Jânio Quadros, João Goulart, Carlos Lacerda, Samuel Wainer, Sobral Pinto. Com os escritores e artistas deixa transparecer mais claramente as preferências pessoais, envolvidas numa aura de cordialidade e afeto. Assim acontece no que escreveu a respeito de Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Alceu Amoroso Lima, Manuel Bandeira, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Rubem Braga, Djanira, Clarice Lispector, para só citar esses que figuram no livro, entre outros.
Escrevia sempre com limpidez e correção, sem ser uma cultura da gramática. Esse asseio de estilo correspondia a uma formação moral e religiosa que sua aceitação do inelutável nos costumes modernos não disfarçava em hipocrisias. Era aberto ao novo, mas guardava no íntimo um pudor antigo: a obsessão do erotismo lhe repugnava. Não é jamais esta, nem a do escândalo, a chave que utiliza para retratar os personagens de "O Príncipe e o Sabiá".
O auto-retrato vem no final do livro, com o título "Quem é OLR?", um esboço autobiográfico feito para responder a uma pergunta de Paulo Mendes Campos. Documento curioso, escrito à maneira de confissão, monólogo interior, fluxo de consciência – o mais próximo que ele chega da memorialística. Este era um gênero pelo qual já tinha manifestado aversão, embora sua memória não falhasse, e apesar de se sentir convocado e invadido por "mil reminiscências", ou "tantas inspirações e lembranças que me atropelam a guelra". De memórias não queria saber, tinha "horror" à idéia de escrevê-las; gostava de ler as dos outros.
Assim, esse "Quem é OLR?" ganha importância de raridade.
Muito se enganará, porém, quem o interpretar sem certa malícia... mineira. Otto não se deixa pegar pelo pé, muito menos pelo pé da letra. Ele mesmo dá a entender isso quando se qualifica de "arisco e passarinheiro", concha, bicho-do-mato. Não dá bandeira fácil, não fosse um mineiro da mais pura mineiridade. Dizia e escrevia a toda hora coisas engraçadas, fulgurantes, definitivas ("Entrei no jornalismo exatamente como cachorro entra na igreja: porque achei a porta aberta", "sou um sobrevivente sob os escombros de valores mortos", "deixei sempre a vida acontecer", "a grande contribuição de Minas Gerais para a cultura nacional é a tocaia", "sou visceralmente conciliador, a coisa que mais admiro no mundo é a ponte"), mas ninguém pense que disse tudo. Sempre há alguma coisa oculta por elipse, um disfarce machadiano; sempre deixa uma escapatória, uma saída de emergência. Cultiva o sentimento da ambiguidade, da dialética. Incorpora as razões do Outro antes de discordar: "Há muita coisa verdadeira para mim que digo para ser contestada, para me convencerem do contrário".
Viveu atormentado pela suspeita de não se haver explicado bem, embora possuindo em grau elevado o dom da clareza e o culto da verdade. Morreu antes do tempo, e sem resolver a sua luta com esse tempo que lhe fugia impiedosamente. Não saberá talvez, lá do outro lado, como foi generoso no seu legado espiritual, do qual este livro de agora é um testemunho duradouro.

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