São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994 |
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Burke investiga o sublime
VINICIUS DE FIGUEIREDO
O sublime não precisou esperar por Burke para firmar-se como um dos temas centrais do século 18. O "Tratado sobre o Sublime", de Longino, fora resgatado da antiguidade já em 1674, por Boileau. Mas a canônica neoclássica, como didática orientada pela imitação da natureza, assimilou mal essa modalidade de experiência estética aparentada ao assombroso, ao disforme, preferindo a ela os efeitos familiares do belo. Disso interessa reter que a originalidade de Burke não reside na redescoberta de um tema, mas na invenção de uma abordagem particular para ele, Burke, leitor de Shaftesbury e Hutcheson, amigo de Hume e Adam Smith, faz parte daquela tradição de autores não-continentais que, ao longo do século 18, quiseram acertar contas com Hobbes. A reação ao que presumiram ser o ceticismo moral hobbesiano começa com Shaftesbury: em vez de subordinar a ética ao contrato político que funda o Estado, formula um ideal de conduta no qual a virtude individual e a boa performance pública decorrem espontaneamente do autoconhecimento filosófico. Contra Hobbes, Shaftesbury postula que a norma a reger as interações sociais não pode ser externa a seus agentes. Hutcheson, nesta linha, radicaliza a idéia de um sentido moral presente no homem – sentido que nos permitiria distinguir o certo do errado assim como o paladar distingue o amargo do doce. Burke se inscreve nesta tradição, operando sobre ela algumas modificações. A primeira delas consiste em descartar o viés acentuadamente epistemológico de Hutcheson. Mais na linha de Shaftesbury, Burke formula sua moral recorrendo a uma análise dos comportamentos produzidos pelas paixões. Com esse intuito classificatório, mostra que as idéias de sublime e belo têm origens irredutíveis entre si, rompendo de vez com a doutrina neoclássica, que tendia a ver no sublime mero superlativo do belo. Mais importante: confere a estas categorias estéticas uma dimensão antropológica a partir da qual esboça uma gramática das relações sociais com base no curso das paixões humanas. O sublime também entra aí confirmando a índole afetiva com que Burke reveste a sociabilidade. Nele, agrupam-se aquelas paixões que concernem a autopreservação: medo, doença, morte, todas estas figuras, quando sentida a uma certa distância (por exemplo, quando encenadas), causam deleite ("delight"). Isso porque nos lembram a solidão absoluta da qual nos protege justamente a inscrição na ordem coletiva. Em contrapartida, Burke também reconhece o valor de uma solidão temporária – e no elogio dela aproxima-se de Rousseau, que, pela mesma época, iniciara sua crítica à superficialidade da sociabilidade burguesa. Com efeito, o sublime de Burke, tal como a simplicidade natural evocada por Rousseau, nos convida a pôr entre parênteses o universo compartilhado por todos, como se sair dele fosse indispensável à reflexão. Recentemente, há quem queira desarmar os núcleos de consenso – como se este fosse, por princípio, um obstáculo ao pensamento. É assim que Lyotard retoma o sublime de Buke – esquecendo-se porém, de sua contrapartida, o belo, que, representando 25 virtudes do consenso, não por acaso será retomado por Habermas contra Lyotard. Texto Anterior: A exótica fusão de teorias de E. Lévinas Próximo Texto: O que há de novo na geografia do mundo Índice |
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