São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Burke investiga o sublime

VINICIUS DE FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Uma Investigação Filosófica Sobre a Origem de Nossas Idéias do Sublime e do Belo", escrita por Edmund Burke aos 28 anos, é uma das obras-primas do século 18. Celebrizou imediatamente seu autor: a partir de 1759, quando recebeu sua segunda versão, teve dez edições no Reino Unido ao longo dos 30 anos seguintes. Na Alemanha, quase foi traduzida por Lessing, que foi antecipado por Garve. A primeira tradução francesa é de 1765. A recém-publicada tradução brasileira chega em boa hora, apesar do atraso: a obra de Burke é uma das peças centrais paraa a reconstrução do debate sobre o sublime, tão em voga com a última onda filosófica francesa.
O sublime não precisou esperar por Burke para firmar-se como um dos temas centrais do século 18. O "Tratado sobre o Sublime", de Longino, fora resgatado da antiguidade já em 1674, por Boileau. Mas a canônica neoclássica, como didática orientada pela imitação da natureza, assimilou mal essa modalidade de experiência estética aparentada ao assombroso, ao disforme, preferindo a ela os efeitos familiares do belo.
Disso interessa reter que a originalidade de Burke não reside na redescoberta de um tema, mas na invenção de uma abordagem particular para ele, Burke, leitor de Shaftesbury e Hutcheson, amigo de Hume e Adam Smith, faz parte daquela tradição de autores não-continentais que, ao longo do século 18, quiseram acertar contas com Hobbes. A reação ao que presumiram ser o ceticismo moral hobbesiano começa com Shaftesbury: em vez de subordinar a ética ao contrato político que funda o Estado, formula um ideal de conduta no qual a virtude individual e a boa performance pública decorrem espontaneamente do autoconhecimento filosófico. Contra Hobbes, Shaftesbury postula que a norma a reger as interações sociais não pode ser externa a seus agentes. Hutcheson, nesta linha, radicaliza a idéia de um sentido moral presente no homem – sentido que nos permitiria distinguir o certo do errado assim como o paladar distingue o amargo do doce. Burke se inscreve nesta tradição, operando sobre ela algumas modificações.
A primeira delas consiste em descartar o viés acentuadamente epistemológico de Hutcheson. Mais na linha de Shaftesbury, Burke formula sua moral recorrendo a uma análise dos comportamentos produzidos pelas paixões. Com esse intuito classificatório, mostra que as idéias de sublime e belo têm origens irredutíveis entre si, rompendo de vez com a doutrina neoclássica, que tendia a ver no sublime mero superlativo do belo. Mais importante: confere a estas categorias estéticas uma dimensão antropológica a partir da qual esboça uma gramática das relações sociais com base no curso das paixões humanas.
O sublime também entra aí confirmando a índole afetiva com que Burke reveste a sociabilidade. Nele, agrupam-se aquelas paixões que concernem a autopreservação: medo, doença, morte, todas estas figuras, quando sentida a uma certa distância (por exemplo, quando encenadas), causam deleite ("delight"). Isso porque nos lembram a solidão absoluta da qual nos protege justamente a inscrição na ordem coletiva. Em contrapartida, Burke também reconhece o valor de uma solidão temporária – e no elogio dela aproxima-se de Rousseau, que, pela mesma época, iniciara sua crítica à superficialidade da sociabilidade burguesa. Com efeito, o sublime de Burke, tal como a simplicidade natural evocada por Rousseau, nos convida a pôr entre parênteses o universo compartilhado por todos, como se sair dele fosse indispensável à reflexão. Recentemente, há quem queira desarmar os núcleos de consenso – como se este fosse, por princípio, um obstáculo ao pensamento. É assim que Lyotard retoma o sublime de Buke – esquecendo-se porém, de sua contrapartida, o belo, que, representando 25 virtudes do consenso, não por acaso será retomado por Habermas contra Lyotard.

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