São Paulo, segunda-feira, 28 de fevereiro de 1994
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A língua é minha pátria

O homem é, sem dúvida, o único animal que foi capaz de articular uma linguagem, que é a base mesma da cultura humana. E o homem fala desde que é homem, ou seja, algo entre 1 milhão e 1,5 milhão de anos atrás. É claro que fósseis de hominídeos não podem dar indicação dos sons que eles faziam, mas os utensílios encontrados nesses sítios pressupõem um grau de colaboração entre membros de uma comunidade que não poderia ter sido atingido sem a linguagem.
Falar em idioma, portanto, é referir-se a um patrimônio de mais de 1 milhão de anos e que foi provavelmente o principal fator que permitiu à humanidade chegar onde está.
E os lexicógrafos, por força de sua profissão, tentam aplicar um pouco de ordem onde reina o caos. Assim, tramita no Congresso uma proposta de acordo ortográfico que visa à simplificação e unificação do português do Brasil, Portugal e países africanos lusófonos. Na verdade, trata-se de umas poucas mudanças que não chegam a atingir 1% das palavras, limitando-se a eliminar alguns acentos e hifens. Não haveria, portanto, razão para se opor a essas alterações.
Resta saber se há motivo para apoiá-las. Em primeiro lugar há uma questão de ordem econômica. Se as mudanças forem aprovadas, perder-se-ão centenas de milhares de fotolitos que não mais poderão ser reeditados, pelo menos não de acordo com a grafia oficial.
Há também a questão do aprendizado. Assim como se deseja uma certa estabilidade nas leis, deseja-se-a também na gramática. Com efeito, o português já passou por tantas reformas que muita gente simplesmente desiste de acompanhar as mudanças de regra da língua. É muito comum, por exemplo, encontrar a palavra "coco" escrita com um acento circunflexo sobre o primeiro ô. Esse acento deixou de existir em 1943, há 51 anos, e muitos parecem não se ter dado conta.
E por que é tão primordial que brasileiros e portugueses escrevam da mesma forma? Em primeiro lugar, as diferenças não chegam a impedir a mútua compreensão através da escrita. Diversas outras línguas vivem o mesmo processo de distanciamento, mas não o encaram como um problema. Britânicos e norte-americanos, por exemplo, escrevem de forma diferente uma série de palavras como "centre" e "center", "programme" e "program" e não parecem ligar para isso. Mesmo porque, se unificassem hoje seus idiomas, teriam de fazê-lo novamente dentro de algumas décadas, e depois, mais uma vez. Afinal a língua é uma coisa viva, que evolui.
De fato, é absolutamente natural que uma mesma língua siga em duas vertentes diferentes. Foi assim que, dos grunhidos dos primeiros hominídeos acabaram surgindo idiomas como o indo-europeu, que deu origem, entre outros idiomas, ao latim que por sua vez produziu, entre outras línguas, o português. Trata-se de uma riquíssima história que se confunde com a própria história da humanidade.

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