São Paulo, segunda-feira, 7 de março de 1994
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O corporativismo da batina

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – A vida não passa de uma grande tourada. Somos o toureiro. A morte, o touro. Pode-se toureá-la por algum tempo, mas sempre haverá o dia da chifrada letal. A capa vermelha com que se ilude o touro ganha, na arena cotidiana, várias formas. Cada um se esgueira como pode. Tome-se o exemplo de uma prostituta em tempos de Aids. Sua capa terá o inevitável formato de um preservativo. Negar-lhe acesso a uma camisinha pode ser o mesmo que abreviar-lhe a vida.
Na última semana, conversei aos sussurros com os poucos leitores que ainda me toleravam. Antes, convidei-os a escapulir para o deserto. Só entre dunas, longe de testemunhas, soprei-lhes aos ouvidos minha indignação com o descaso de d. Luciano Mendes de Almeida para com uma multidão de adeptos do sexo variado. O doce arcebispo -eu o havia rebaixado a bispo- revelou-se contra o conteúdo da campanha anti-Aids. Opôs-se à distribuição gratuita de camisinhas. Chamei-o, e não me arrependo, de Amaral Neto de batina.
Estarreci-me com a quantidade de carolas que me espreitavam por detrás dos bancos de areia. Houve chuva de cartas na redação. Algumas trovejaram sobre a minha cabeça, em Brasília. Outras pingaram fúria na sede, em São Paulo. O temporal provocou no Painel do Leitor uma enxurrada de protestos. Falei do que há entre nós de mais absoluto: a morte. Responderam-me com elogios a d. Luciano. Ora, nem o papa do ateísmo deixará de reconhecer em d. Luciano os traços de um homem de bem. Mas ele errou. Insisto: errou como erra toda a Igreja na abordagem de temas tão delicados quanto o homossexualismo e o planejamento familiar.
No cenário fúnebre que montei semana passada, tínhamos d. Luciano de um lado e o combate à Aids do outro. Eis o que reforçou o meu espanto: a corporação da batina achou que o arcebispo era uma solidariedade mais urgente. Na última terça-feira, se um aidético de Mariana (MG), no seu leito de morte, clamasse pela extrema-unção, morreria à míngua. Reunidos em assembléia, 125 padres daquela arquidiocese solidarizavam-se com d. Luciano. Nesse ritmo, logo não haverá capa que consiga livrar o catolicismo dos chifres do touro.

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