São Paulo, sexta-feira, 11 de março de 1994
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Espírito de aventura triunfa sobre personagens

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: A Lista de Schindler
Produção: EUA, 1993, 195 min.
Direção: Steven Spielberg
Elenco: Liam Neeson, Ben Kingsley, Ralph Fiennes
Onde: a partir de hoje nos cines Ipiranga 1, Metro 1, Gemini 2, Astor, Center Iguatemi 1 e 3, Morumbi 3 e circuito

Todo mundo sabe como acaba "A Lista de Schindler": os judeus são massacrados e os nazistas perdem a guerra. O pouco que não se sabia, a publicidade encarregou-se de espalhar aos quatro ventos. Oskar Schindler (Liam Neeson) era um católico de origem alemã que, embora membro do Partido Nazista, conseguiu evitou a morte de cerca de 1.200 judeus nos campos de extermínio da Polônia.
Todo o interesse de "A Lista de Schindler" consiste, portanto, em descobrir como e por que essas coisas aconteceram. Spielberg dá conta da primeira parte da tarefa de maneira mais que satisfatória. A segunda é mais problemática.
A primeira diz respeito ao "como", e não há maneira de negar a força descritiva das imagens que revelam o confinamento dos judeus em guetos, o progressivo massacre a que são submetidos, primeiro em campos de concentração, mais tarde em locais destinados ao seu extermínio em massa.
"A Lista" reconstitui o clima a princípio opressivo, mais tarde cada vez mais demencial que envolve a perseguição dos judeus pelo nazismo. É nessa parte que estão quase todas as sequências fortes do filme: a evacuação do gueto de Cracóvia; os embarques em trens destinados aos campos de extermínio; o horror de Auschwitz. O filme se estrutura aí em espiral: as cenas praticamente repetem-se, com a diferença de que a cada vez a repressão torna-se mais brutal.
Existe, porém, o outro lado, o do "por que", e nesse aspecto "A Lista" mostra seus limites. Oskar Schindler é um personagem raro. De início, usa seu incrível poder de sedução para ganhar influência junto à cúpula do regime. Seu objetivo é fazer fortuna fabricando panelas para o exército, usando os judeus como mão-de-obra barata.
Schindler não é apenas homem de cama e mesa dos chefões nazistas. Não é alheio à realidade dos campos de concentração e, em certa medida, participa dela. Ora, é este homem de absoluta confiança das autoridades que, a horas tantas, decide enterrar sua fortuna, conseguida com calculada sordidez, na nobre missão de salvar tantas vidas quanto possa.
O que aconteceu na cabeça de Schindler? E por quê? Nesse particular –e esse particular é quase tudo, no caso– o filme beira a omissão. Spielberg prefere desenvolver os aspectos "emocionais" de sua estranha aventura. Com isso, ao final do filme sabemos quase tão pouco sobre Schindler como ao entrar no cinema.
O segundo personagem que o filme falha ao desenvolver é Arnon Goeth (Ralph Fiennes), o responsável pelo campo de trabalho de Lublin. Goeth é um sádico de caricatura, capaz de usar seres humanos em suas práticas de tiro ao alvo. Mas não importa que essa categoria de pessoas tenha existido ou não. Tudo que interessa saber é como um tipo de entendimento das coisas leva indivíduos a se comportarem de forma bestial.
Ou seja, o nazismo não é propriamente uma anomalia que surge da terra. É uma maneira de ver as coisas com raízes na história alemã e no cristianismo, que busca se legitimar através de um discurso científico (por insano que seja), que escande sua ideologia por meio de uma propaganda inteligentíssima (não por acaso, Goebbels supervisionava pessoalmente os principais filmes alemães).
Breve, por incrível que pareça o mais espantoso em tudo isso é que aos alemães não parecia nem um pouco anômalo que os judeus fossem exterminados da maneira mais infame de que se tem notícia na história da humanidade.
Com Goeth, Spielberg tinha a chance de expor para platéias imensas essas idéias (mostradas de forma exemplar no documentário "Arquitetura da Destruição") e o processo de sua formação.
Como "A Lista" se estrutura em espiral, o subdesenvolvimento desses dois personagens leva a um desquilíbrio: ao crescendo da perseguição aos judeus, não corresponde o crescimento proporcional do conhecimento que temos dos germânicos. É nessa medida que "A Lista" se assemelha muito aos outros filmes "sérios" de Spielberg: a partir de dado momento, as idéias se repetem, reafirmam o já dito, as retomadas não aprofundam o tema, uma certa monotonia instala-se. "A Lista de Schindler" mostra bem um episódio da era nazista. Mas ao mundo importa mais prevenir os nazismos futuros, e sobre isso o filme silencia.

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