São Paulo, sexta-feira, 11 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Máximas encerram verdades e mentiras

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Costuma-se dizer que o otimista é apenas uma pessoa mal informada. Com certeza, qualquer raciocínio pessimista, qualquer conclusão deprimente, qualquer frase amarga tem algo de realista e verdadeiro –pois significa a disposição de seu autor em não se deixar enganar, em não ser ingênuo, em não ser bobo.
E como todas as mentiras tendem a ser agradáveis –a começar por Papai Noel– todas as verdades são sempre, como atesta o senso comum, ruins de ouvir.
As "Máximas e Reflexões" de La Rochefoucauld (1613-1680), publicadas agora em nova tradução pela editora Imago, são uma aula de pessimismo e de desconfiança face à natureza humana. Por isso mesmo, alcançam enorme poder de convencimento. Parecem verdadeiras, e na maior parte o são, à medida que desiludem o leitor.
Alguns exemplos: "Só louvamos geralmente quem nos admira". "Quem pensa amar a amante por amor a ela, está bem enganado". "O interesse, de quem acusam todos nossos crimes, merece muitas vezes ser louvado por nossas boas ações". "Quem fala bem de nós nada de novo nos ensina". "A recusa de louvores é desejo de ser louvado duas vezes".
Tendo frases como essas, o seu conteúdo de verdade nos choca de imediato. Que, nas virtudes mais admiráveis, esconda-se um fundo de interesse próprio e de vaidade; que o egoísmo seja o motor secreto mesmo dos atos mais desprendidos; que o amor, a virtude, a coragem não sejam nada disso do que se pensa –basta parar um pouco para concordar com La Rochefoucauld. Seu pessimismo é sempre convincente.
Pode-se inscrever o autor das "Máximas" na linhagem desses grandes "mestres da desconfiança", na frase de Michel Foucault a respeito de Marx, Nietzsche e Freud: motivos baixos, ou pelo menos auto-interessados, estão para ser descobertos em todas as ações humanas, e em tudo há sempre algo de incofessável a ser revelado pelo escritor.
O problema é que, por mais verdadeiras que sejam ou pareçam, as frases de La Rochefoucauld envolvem sempre uma decisão de concordância por parte de quem as lê. Tudo está escrito de forma tão cristalina, foi pronunciado do alto de tamanha "experiência de vida", que nos sentimos idiotas se não aceitarmos todo o pessimismo do autor.
Concordar com o que La Rochefoucauld escreve é, por definição, uma atitude tão "suspeita" quanto a de discordar dele. Aceitar o seu pessimismo talvez seja efeito apenas de uma vaidade: a de não nos considerarmos mais ingênuos do que o autor.
La Rochefoucauld traça um retrato nada elogioso da alma humana: as maiores virtudes se deixam mover por vícios secretos, às vezes é só a preguiça e a fraqueza que nos afastam do mal.
O estranho é que, depois de ler tantas pérolas do pessimismo, não nos sentimos deprimidos. Ganhamos uma ilusão de sabedoria, um conforto de superioridade e de distância frente a nós mesmos e a nossos iguais. E, se for para pensar como La Rochefoucauld, isto não é bom sinal do ponto de vista ético.
É como se em nosso puro amor da verdade, em nosso gosto pelo conhecimento das fraquezas humanas, em nossa autopenitência até, houvesse o prazer de nos considerarmos cúmplices das descobertas amargas feitas pelo autor. Não somos tão maus assim, portanto –já que compartilhamos, com La Rochefoucauld, a sabedoria impessoal e desencantada das suas frases.
Há nas "Máximas e Reflexões" um certo efeito "despersonalizador", uma certa alienação do sujeito, um desencontro do autor consigo mesmo. Quando La Rochefoucauld diz, por exemplo: "Somos às vezes tão diferentes de nós mesmos quanto dos outros", ou "Não somos nunca tão felizes nem tão infelizes quanto imaginamos", é como se cada frase fosse enunciada por alguém distante de si mesmo; como se, para escrever tais máximas, o autor tivesse de adotar um ponto de vista incorpóreo, acima e além da própria subjetividade. Um ponto de vista "desumanizado" enfim, para maior glória de sua própria inteligência.
Grande parte do que La Rochefoucauld escreve é verdadeiro e atualíssimo. Mas mesmo o pessimismo pode ser enganador.
No começo do século, Paul Reboux e Charles Muller escreveram uma série de pastiches, de imitações sarcásticas de autores franceses famosos. Dedicaram algumas páginas a La Rochefoucauld, no que talvez seja a melhor forma de denúncia contra a pretensão oracular, definitiva, de quaisquer aforismos.
Reboux e Muller imaginaram uma carta escrita por La Rochefoucauld a seus editores, reclamando dos incontáveis erros no livro. O pastiche inteiro é em forma de errata. Onde se lê: "Um tolo não tem nunca bastante estofo para ser bom" (esta uma das frases famosas de La Rochefoucauld), leia-se, brincam Reboux e Muller: "Um tolo sempre tem bastante estofo para ser bom". La Rochefoucauld escreveu que "só os desprezíveis temem ser desprezados". O pastiche de Reboux e Muller diz que não: "Só os desprezíveis não temem ser desprezados". "Há casamentos bons, mas não os há deliciosos". Inversão: "Há casamentos deliciosos, mas não os há bons".
A lição deste pastiche, embora não anule as descobertas reais, as verdades de La Rochefoucauld, talvez seja a seguinte. É a de que pela própria forma, pela própria concisão, um aforismo ou sentença clássica nos levam a concordar com o que está impresso no papel; o conteúdo, se é "A" ou "não-A", importa menos.
Num livro de máximas se abre, por assim dizer, um espaço de concordância. Tudo parece mais verdadeiro quando escrito sob forma de aforismo. Para citar outra máxima, esta de Robert de Montesquiou: "A leitura de máximas tem certa relação com a leitura dos dicionários de medicina: fazem descobrir em nós sintomas de todas as doenças que descrevem".
Mas o pessimismo do autor não nos leva a concluir que os vícios sejam mais estimáveis do que as virtudes. Contesta a sua origem (grande tema para Nietzsche) mas não sua qualidade intrínseca.
E, quanto a considerar desprezível a natureza humana, isso é fácil de concordar. Mas desde que se acredite na existência de uma "natureza humana" imutável, impermeabilizada quanto às influências do meio social. Reservo-me o direito de ser desconfiado no que tange a essa afirmação.

Texto Anterior: Bienal traz a coreógrafa Trisha Brown
Próximo Texto: Novo rock do Recife invade a cidade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.