São Paulo, sábado, 12 de março de 1994
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Spielberg redige último capítulo da Bíblia

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Spielberg redige último capítulo da Bíblia
Como demonstram as sofisticadas torturas criadas no Brasil desde 64, o nazismo está longe de ser extinto
O filme "A Lista de Schindler" expõe de tal forma a maldade que existe dentro do homem, que se torna importante extrairmos dele toda a licão que contém. O horror específico do nazismo vem do fato de que brotou de dentro do povo alemão, que, como nenhum outro, mergulhou fundo na grande música e na grande filosofia. Mas existe a semente do nazismo mesmo em povos que ainda passam longe de sinfonias e fenomenologias.
Dentro de poucos dias, ou seja, a 31 de março, completa 30 anos no Brasil o golpe militar de 1964, que nos mergulhou num regime nazista, solidamente apoiado na tortura. A tortura até ganhou aqui variações nacionais de grande criatividade, como o pau-de-arara, a pimentinha, a cadeira do dragão, a geladeira, de grande uso nos quartéis da polícia e das Forças Armadas.
Dia 31 deviam ser lidos nas escolas capítulos do livro "Brasil: Nunca Mais", apresentado por Dom Paulo Evaristo Arns. "Mortos sob Tortura", por exemplo, é um capítulo muito informativo e acaba com a descrição do que aconteceu com Wladimir Herzog.
Para o público mais jovem talvez viesse a calhar "Tortura em Crianças, Mulheres e Gestantes". O senador Passarinho disse outro dia que tem saudades do regime militar. Que tal arranjar um tempo no horário político da televisão, em geral tão insosso, para que o senador leia trechos bem apimentados de "Brasil: Nunca Mais"?
O livro de Ester
Vi "A Lista de Schindler" em sessão especial no teatro da Manchete. Havia na sala muitos judeus brasileiros, que em sua maioria têm lembranças diretas, pessoais, do Holocausto. Não existe, aliás, comunidade judaica em qualquer parte do mundo que não acuse essas cicatrizes: avós, um irmão, um pai desaparecidos numa hecatombe maior que qualquer outra das registradas na história do povo judeu, como a que escreveu Josefo, ou no Antigo Testamento.
Agora, mais do que nos museus do Holocausto fundados em Israel ou nos EUA, a história do Holocausto criou vida e movimento eternos na obra-prima das monstruosidades que registra, não desfalca ainda mais os escassos recursos de esperança e fé no homem que ainda nos restam neste final de século. Spielberg encontrou, para guardar para sempre a lembrança fúnebre do Holocausto, um herói que de fato viveu, que se chamava Oskar Schindler e era alemão e nazista.
No Livro de Ester, Hamã, que planeja exterminar todo o povo judeu, é derrotado pelo encanto que exerce Ester sobre o rei. No filme de Spielberg, Schindler, quando entra em cena, já perdeu a batalha para Hitler, que leva adiante seu plano industrial de extermínio.
Mesmo assim, Oskar Schindler –elegante, rico mas devorado por uma compaixão realmente misteriosa– vai usar junto aos oficiais nazistas seu encanto de empresário que sabe subornar com graça e que nunca fala em piedade e, sim, apenas em eficiência.
Hitler exterminou seis milhões de judeus com seus exércitos e seus campos de concentração. Schindler salvou cerca de 1.200 deles da morte certa com seu suborno, sua graça e um secreto amor. Alguns desses que ele salvou aparecem no fim do filme, ao redor do seu túmulo. Dois dos sobreviventes moram no Rio.
É difícil comparar com qualquer outro o filme que fez Spielberg, baseado em livro de Thomas Keneally. Em termos do que o cinema pode fazer para manter vivo um momento histórico único, só me ocorre compará-lo ao "Napoleão" de Abel Gance. Mas enquanto Gance refez com a câmara a trajetória de um herói quase estereotipado de tão heróico, Spielberg teve que se haver com seu Oskar ambíguo, católico pouco praticante, gozador da vida.
O tema de "A Lista de Schindler" é tão medonho e desolado que, salvo por pouquíssimas pinceladas de cor aqui e ali, o filme é todo branco-e-preto, cor de cinza. Só a cena final, a do túmulo de Schindler cercado de flores e de alguns daqueles que salvou, tem ar, tem sol. E tem a cor do mundo que sobreviveu a Hamã-Hitler, graças à lábia de Ester Schindler.
O filme estabelece um contraste fundamental entre a figura de Schindler, representado por Liam Neeson, e o oficial nazista Amon Goeth, representado por Ralph Fiennes.
No Rio, em 1968, Amon Goeth teria obedecido alegremente ao brigadeiro João Paulo Burnier e tocado fogo no gasômetro da cidade. Goeth, aliás, além da sua fúria racista e purista, é também corrupto, tal como os militares quando assumem o poder. Excluídas as sinfonias e fenomenologias é tudo da mesma raça.
Arte de deslembrar
Podemos esquecer as coisas que nos repugnam e nos envergonham. Esquecer inteiramente, ou quase, desde que não haja testemunhas. Num caso como o do Holocausto, que deixou milhões de mortos, que por sua vez deixaram milhões de parentes e de testemunhas, esquecer parece impossível.
Mesmo assim há quem tente pelo menos "deslembrar", que é um processo gradual, de balançar a cabeça, pôr em dúvida, dizer que não foi bem assim, ou que o exagero transforma transgressões de tempo de guerra em crimes hediondos.
Os museus do Holocausto estão sendo fundados porque os locais do Holocausto, isto é, os campos de concentração, estão desaparecendo, estão se esquecendo de si mesmos, se deslembrando.
Auschwitz-Birkenau, que aparece em "A Lista de Schindler", está sumindo. Lá ainda se guardam, para que os visitantes as vejam, vetustas latas que contiveram outrora o gás exterminador Zyklon-B, e fardos e fardos dos cabelos cortados dos judeus antes da execução: os cabelos tinha uso industrial.
No mais, o que existe é uma paisagem de chaminés em ruínas, que expeliram, meio século atrás, o último alento dos que não fizeram parte da lista de Schindler.
A verdade é que o tempo ajuda aos que querem deslembrar e confundir, como o "historiador" berlinense Ernst Nolte, no cínico esforço de "relativizar" o Holocausto, isto é, de estabelecer comparações com outras atrocidades, para provar que todas são, em tempo de guerra, naturais, ou pelo menos inevitáveis.
Os especialistas em deslembrar buscam apoio num argumento que tem seu lado infantil, mas seu lado sórdido também: só gente com uma imaginação muito doentia pode atribuir a um povo civilizado os horrores de Auschwitz-Birkenau, Dachau, Buchenwald.
"A Lista de Schindler" vai deixar sem fala os que querem deslembrar, relativizar, amesquinhar a maior de todas as tragédias. O filme de Spielberg só conta a verdade, do princípio ao fim.
E não a verdade tal como podemos encontrá-la num dos museus do Holocausto, olhando as relíquias terríveis e ouvindo um guia. A verdade como se estivéssemos numa igreja, possuídos pela música e participando do rito.

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