São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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À memória do economista Ignácio Rangel

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Mestre Rangel ensinou-me a pensar a questão financeira, coisa pouco comum nos economistas de esquerda de seu tempo. Disse-me há poucos meses, com o fio de voz que lhe restava: "Estamos num cotovelo da história". É verdade mestre. Todos os que sobrarmos, continuaremos a sua luta, para devolver às novas gerações, se não o seu otimismo, sua coragem e perseverança. Descanse em paz.

A moeda financeira indexada e com altos juros, continua "roendo o ventre" da URV e aparentemente fará o mesmo com o real. Os macroeconomistas só vêem o juro do lado da demanda agregada. No máximo, quando têm experiência financeira, preocupam-se com o mix entre rentabilidade e risco do portafólio dos agentes. O efeito dos juros sobre o custo do capital de giro, com seu impacto nos preços das cadeias produtivas, quase nunca é levado em conta.
Ora, o problema atual com a passagem desordenada à URV não está na demanda agregada e sim nos contratos das cadeias produtivas e da aceleração de preços das cadeias de comercialização, que operam em sentido contrário ao da estabilização. A alta de juros não ajuda a coordenação de preços livres e, com o atual regime monetário e financeiro, não permite controlar a liquidez da economia.
Em compensação, a estrutura temporal dos contratos e as posições de carteira das instituições financeiras são violentamente afetadas por movidas bruscas nas taxas de juros, levando os agentes a acirrar a sua vocação especulativa.
Bolha de consumo não haverá porque o nível médio de salários é baixo e está constante em URV, enquanto o nível médio de preços de consumo era alto de partida e está-se acelerando em produtos alimentares, de limpeza e higiene, além de tarifas, escola, saúde e outros serviços essenciais que sobrecarregam o orçamento doméstico.
O câmbio, movido por manobras especulativas, subiu no meio da semana, ameaçando separar-se definitivamente dos salários e da URV. Para evitar a divergência dos índices, o Banco Central intervém no mercado de câmbio e para prevenir outro movimento especulativo nos mercados financeiros "hedgeados" em dólar, subiu resolutamente a taxa de juros.
Este movimento revela uma derrota e não uma vitória do BC na condução do plano. Leva mais água no moinho dos especuladores que já saíram muitos deles do título pós-fixado em IGP-M e agora se divertem copiando o seu símbolo predileto, o Dr. Soros, especulador internacional que, seguido de perto pelos seus copiadores, terminou por levar o mercado mundial de "hedge" cambial a um impasse, noticiado quarta-feira pela imprensa. Como é óbvio, também temos os nossos candidatos a Soros.
Assim, enquanto o alarido em torno do artigo 36 permanece, mais para ofuscar os problemas do real do que para esclarecê-los, o conflito entre posições distintas dentro do mercado financeiro e o BC continua.
Até aqui, o BC continua paralizado e não tomou nenhuma posição ativa e negociada com os distintos grupos que possuem títulos em carteira com prazos de vencimento e instrumentos financeiros muito variados. Limitou-se a subir os juros no intuito de evitar o "instinto de manada" a que se referia Keynes e que estamos novamente presenciando no mercado financeiro globalizado e desregulado.
Com medo de romper os contratos, mas sem dar sinalização clara de como os agentes devem comportar-se, deixa que o "mercado" se "acomode". Ora, os mercados financeiros, amparados até hoje em títulos da dívida pública com risco nulo e rentabilidade máxima, não cedem, pressionam a taxa de juros para ganhar nas posicões atuais e na fase de transição as supostas perdas do "Dia D".
Os agentes com posições em títulos de longo prazo, fundos de pensão, distribuidoras ligadas a construtoras e alguns bancos oficiais não podem saber qual será o melhor indexador para um ano e qual os juros que devem embutir nos novos contratos. Até porque não podem romper os contratos velhos, somente repactuá-los.
A choradeira com a "perda" do "Dia D" dos portadores de títulos corrigidos pelo IGP-M é fantástica, como se o que foi imposto aos trabalhadores fosse uma coisa inaceitável por eles. Por acaso não sabiam que a inflação medida pela FGV ou pelo IBGE é uma média de quatro semanas contra as quatro anteriores que exclui a quarta semana do mês? Este é o índice dos contratos, logo não há perdas.
O problema maior por trás de tudo isso é a "ciranda financeira". A pretexto de não romper os contratos está-se pretendendo manter como base dos novos contratos financeiros em real, a moeda indexada. Naturalmente, os trabalhadores, com muito mais razão, pedirão um gatilho em URV e a história toda recomeçará de novo. Passado o "Dia D" e fixado um prazo prudente (um ano?) para que a inflação residual em URV desapareça, os problemas de sempre voltarão.
Do ponto de vista do controle monetário, seria mais fácil para o Banco Central ter os depósitos à vista em URV e controlar as reservas bancárias na mesma moeda, do que permitir que o mercado o obrigue a emitir dívida pública com juros cada vez mais altos.
Vale dizer, o regime monetário também deveria ter a sua fase 2, senão ao chegar ao "Dia D" continuará com as mesmas restrições de antes para controlar a liquidez, agravadas pelo fato de que terá de lastrear o real em reservas internacionais voláteis.
É verdade que poderá tentar controlar administrativamente a entrada e saída de capitais de curto prazo e sujeitar a paridade do real com o dólar a uma banda de flutuação. Esta, porém, não pode ser tão ampla queu mergulhe os mercados de risco numa especulação juro-câmbio, infernal para a administração do BC.
Se os especuladores locais, ao contrário dos internacionais, continuarem lastreados em títulos da dívida pública indexada, isto é, sem risco, e ainda exigirem altas taxas de juros, a rolagem da dívida pública continuará a ser uma dor-de-cabeça para o BC. Este continuará repassando os juros para o Tesouro, sem ter o poder efetivo de controlar a liquidez nem o juro do mercado monetário.
Vale dizer, a "ciranda financeira" não vai desaparecer. O "regime monetário" continuará instável e turbulento, agravado, além disso, pelo fato de estar "lastreado" em dólar. O regime fiscal entrojetará esta turbulência, continuando a depender da política monetária e cambial do BC e do comportamento do mercado financeiro.
Cria-se uma nova moeda, mas aparentemente o regime monetário não fica mais simples nem mais estável e continuará levando de roldão o regime fiscal. As âncoras cambial, fiscal e monetária serão móveis e interdependentes. A única âncora "firme" a que sempre se pode recorrer serão os salários, como ocorre desde 1964.
Triste maneira de "celebrar" os 30 anos de regime autoritário! Felizmente, a maioria da população brasileira é jovem e embora cada vez mais pobre não parece, ainda, estar inclinada a pedir o retorno dos nossos fantasmas.
Provavelmente, teremos trégua no mercado de julho até às eleições. Depois, qualquer que seja o resultado eleitoral, a luta continuará. Por isto, é preciso desde já pensar no futuro. A moeda, o orçamento e o conflito distributivo são pesadelos que nos acompanharão ainda por muito tempo.
Este plano não trata de proteger os mais pobres, porque os técnicos de hoje copiaram os do regime autoritário para pior. Antes, era preciso crescer, atacar a inflação gradualmente e depois distribuir. Agora, é preciso estabilizar, para depois crescer e por fim distribuir.
Até o nome "Fundo Social de Emergência" é uma ficção. Trata-se de um fundo de estabilização em cruzeiros reais que se destina, na "etapa de transição", a absorver o peso adicional dos juros da dívida pública, isto é, deve ser esterilizado. Depois do dia 1º, se os juros caírem (?) e com o que sobrar, poderá ser usado como moeda de troca eleitoral ou deixado como restos para o próximo governo pagar.

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