São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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O dilema do ministro Fernando Henrique

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA

Propor é alegre, executar é penoso. A tradição brasileira em política econômica é combinar extraordinária fertilidade na criação e formulação de idéias e planos com um profundo descaso pela qualidade da execução.
Diagnósticos sofisticados e intenções generosas sempre tivemos de sobra. O que nos falta é um mínimo de senso prático, humildade e compromisso com o fazer. A máxima de Goethe é a nossa sina: "O erro repete-se sempre na ação, por isso deve-se incansavelmente repetir a verdade em palavras".
A realidade de um plano de estabilização, por mais engenhoso que seja, não é o que está na cabeça de seus criadores ou no texto dos documentos oficiais. Se a concepção é brilhante, mas a implementação for frouxa e desastrada, o fracasso é certo. Se a concepção é pedestre, mas a implementação for firme, hábil e corajosa, o sucesso é possível.
A receita da estabilidade requer 5% de concepcão e 95% de implementação. A realidade de qualquer plano de estabilização é o que for feito dele na prática. "No princípio era a ação."
A concepção do Plano FHC ainda é um quebra-cabeça incompleto –talvez até mesmo na cabeça dos seus mentores. Os contornos gerais da proposta estão definidos, mas algumas peças centrais do plano permanecem faltando.
Como se dará a criação e destruição de moeda no novo regime monetário? Que tipo de "lastro" podem ser os ativos das estatais? Qual será o papel da taxa de câmbio na sustentação do poder de compra e da confiança na nova moeda? As perguntas abundam e tudo o que se têm até agora são pistas vagas –matéria farta para especuladores intelectuais e financeiros.
O que mais me preocupa, no entanto, não são as dúvidas e incertezas quanto à definição programática do plano. Acredito que elas poderão ser resolvidas, sem maiores sobressaltos, quando chegar a hora. A questão que vem me deixando cada dia mais apreensivo sobre o futuro do Plano FHC é o problema da implementação.
Considere, de início, a questão orçamentária. A proposta original era condicionar a criação da URV e a reforma monetária à aprovação pelo Congresso de um Orçamento equilibrado para 94. Perfeito. Na prática, não há Orçamento e corremos o risco de passar o resto do ano sem ele.
A Secretaria do Orçamento Federal está em greve e o Orçamento ainda precisa ser refeito à luz das mudanças trazidas pelo FSE. Só então ele poderá ser submetido ao Congresso para emendas (25 por parlamentar = 16.400) e votação. O prazo é exíguo. "Depois de junho", alerta o presidente do Senado, "não se vota mais nesta Casa".
Que garantias se pode ter, nestas circunstâncias, sobre o novo "regime fiscal" prometido pelo governo? Tudo isto, é claro, tendo em vista o fator complicador terrível para o sucesso do Plano FHC, que é o dilema shakespeariano com o qual se depara –e sobre o qual hesita– o ministro Fernando Henrique: ser ou não ser candidato à Presidência da República? Que argumentos poderiam, a esta altura, justificar uma ou outra opção?
O melhor argumento que encontrei para sustentar uma eventual candidatura do ministro é a tese da descontinuidade. Se o Plano FHC não tiver continuidade no próximo mandato, tudo o que vem sendo feito agora –ou pelo menos prometido– perderia sentido.
A ausência de lideranças eleitoralmente viáveis e identificadas com os princípios do plano torna a figura do ministro a única alternativa capaz de garantir esta continuidade a partir de 95. Sair agora, para concorrer à Presidência, seria assumir um risco menor no curto prazo para evitar um risco maior no longo.
Alguns, como o presidente do PSDB, Tasso Jereissati, vão ainda mais longe no seu entusiasmo pela candidatura do ministro. Para ele, como relata a imprensa, "o papel de Fernando Henrique no plano já se esgotou nas negociações com o Congresso e a URV agora precisa apenas de gerenciamento... Assim, sua candidatura não prejudica o plano, mas, pelo contrário, poderá consolidá-lo".
A primeira coisa que chama a atencão neste raciocínio é a leveza e o desprezo com que é tratada a questão, a meu ver crucial, da implementação do plano. Tudo se passa como se, daqui para frente, o problema fosse "apenas" gerencial, isto é, algo para ser "tocado" por um técnico ou preposto do atual ministro, enquanto ele se dedica à tarefa mais nobre da campanha presidencial.
O que este argumento subestima de forma dramática, contudo, é a possibilidade concreta de que a implementação do plano seja seriamente prejudicada pela saída do ministro para concorrer às eleições.
Os argumentos contrários à candidatura de Fernando Henrique são basicamente dois. Ao transformar o Plano FHC em trampolim de campanha, o ministro estará jogando a estabilidade no olho da fogueira eleitoral. Seus adversários na campanha, nos Estados e no Congresso estarão diretamente interessados em derrubar o plano.
Mesmo que a suspeita seja falsa, não haverá nada que o ministro-candidato possa fazer para desmentir de forma convincente a acusação de estelionato eleitoral. Fracassando o plano, a candidatura naufraga.
Ao mesmo tempo, qualquer que seja o substituto do ministro na Fazenda, é difícil imaginar que ele terá a autoridade e legitimidade necessárias para gerir o plano, manter os bancos oficiais na linha, fechar os que saírem da linha e cobrar disciplina do resto do setor público num ano leitoral. Depois de 69 nomeações ministeriais em menos de dois anos, o governo Itamar está virtualmente acéfalo.
Saindo Fernando Henrique, quem irá manter a equipe econômica coesa e impedir que Itamar volte a resmungar sobre as taxas de juros ou dar-se ares de titular da Fazenda?
Largar o Plano FHC agora, no momento exato de sua implementação, seria uma barganha faustiana de consequências imprevisíveis. A missão do ministro Fernando Henrique é ser o fiador da transição.
Ao abdicar de sua candidatura, ele não apenas conquistará a autoridade legítima para traduzir a promessa do plano em realidade, como dará um exemplo de genuína grandeza e espírito público. Há quanto tempo o Brasil carece de estadistas capazes de mostrar este tipo de despreendimento pelo bem comum?

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