São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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Ameaça é tática errada contra a inflação

ALOYSIO BIONDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Antes de qualquer análise, é melhor apresentar "provas", fatos concretos capazes de fazer o leitor reavaliar o que acontece no país. É evidente que a expectativa de "choque" e o próprio "choque" provocaram remarcações brutais de preços não só em fevereiro -mas desde dezembro. Como medir estes abusos? Eles não são generalizados? Não mostram uma explosão inflacionária incontrolável?
Reportagem publicada por esta Folha na quarta-feira permitiu, para quem se disponha a análises isentas, chegar a conclusões surpreendentes. Pesquisa ampla confirmava que a maioria dos setores empresariais apresentava, já em janeiro, preços superiores (em dólares) aos níveis médios do último quadrimestre do ano.
Especulação comprovada? Calma. O grande "salto" ficava com alimentos in natura, vale dizer, com as verduras e legumes, destruídos pelas altas temperaturas deste começo de ano. A alta destes produtos chegava a 14%.
E os alimentos industrializados, apresentados como vilões, "produzidos por oligopólios e cartéis"? Neste caso, a alta era de apenas 2,9%, na maioria dos setores. Os vilões? Alimentos semi-elaborados, basicamente carnes, com 5% (até janeiro), e remédios, com 8,8% (idem).
Há outros dados importantes em cena, a serem lembrados, antes de partir para análises:
Explosão - Acreditava-se que, com as remarcações às vésperas do plano, a inflação de março pudesse saltar no mínimo 5% (cinco pontos percentuais), indo a 45% ou mais em março. Relembrando sempre que a disparada (ou queda) de preços leva quatro semanas para "aparecer" plenamente na taxa de inflação, pode-se registrar que, mesmo assim, estão surgindo índices animadores, abaixo das expectativas.
A inflação medida pela Fipe, na primeira quadrissemana de março (preços de três semanas de fevereiro, mais uma semana de março) subiu apenas 0,68% e ficou nos 38,87%. Explicação para a surpresa: houve grandes altas em alguns setores, mas outros estão puxando os índices para baixo. Isto é, não há a "explosão" generalizada. Roupas, por exemplo, subiram abaixo dos 30% no período.
Contenção - O mesmo fenômeno está refletido nos índices de inflação apurados pela Federação do Comércio de São Paulo, que se baseiam nos preços cobrados pelo varejo paulistano. Em dezembro, alta de 43,7%. Em janeiro, avanço para 45,0%. Em fevereiro, recuo para 40,3%. Apesar da puxada dos preços nas farmácias. Vale dizer, dos remédios. Eles.
Cesta básica - É incrível: o comportamento dos preços da cesta básica não teve nenhum destaque no noticiário da semana. Incrível. A evolução dos custos da cesta básica é apurada e divulgada todos os dias pelo Dieese em associação com o Procon.
Pois ela subiu sempre abaixo de 1,5% ao dia, isto é, sempre abaixo do próprio reajuste da URV, de segunda a quinta. A tendência, de queda da inflação decorrente da cesta básica, foi ignorada. Só se falou em "disparadas".
Já se pode partir, a esta altura, para análise e propostas, para chegar à conclusão final: por uma série de fatores, dos quais o Plano FHC é uma parcela ínfima, há condições de queda da inflação já. Mas a queda não será conseguida com medidas de impacto, ameaças ou retaliações inaceitáveis como a "devassa fiscal".
A guerra da inflação pode ser vencida neste momento no "corpo a corpo", isto é, na administração correta do combate a focos de inflação, e não no "berro". Pode-se alinhavar as razões da afirmação e propostas:
Reviravolta - Na semana que antecedeu o lançamento do Plano FHC, o presidente da República se reuniu com os ministros por 12 horas, das quais oito no domingo. Não se discutiu filigranas jurídicas, certamente. Os jornais noticiaram que, nestas negociações, o ministro FHC pediu demissão duas vezes, por causa de mudanças no plano.
Estranhamente, quando este foi lançado, não se disse à opinião pública que o plano havia sofrido uma reviravolta total em sua própria concepção; antes, ele pretendia achatar os salários, ao converter pela média e, em seguida, não mais reajustá-los, isto é, suprimir a correção automática (mensal) de acordo com a inflação. Objetivo do achatamento: derrubar o consumo, para tentar levar as empresas a reduzir preços, derrubando-se a inflação. A velha concepção conservadora.
Desafio - O plano vindo à luz adotou caminho inverso: introduziu a correção diária para os salários (via URV), embora mantendo em alguns casos leves perdas resultantes da conversão pela média (parêntesis: a inflação de fevereiro, apurada pelo Dieese, ficou em 40%, contra 46% que ele havia apurado para janeiro).
Parece que os economistas estão evitando dizer esta verdade: com a indexação diária dos salários, o Plano FHC foi enterrado. Não existe. Por quê? Ora, se você deixa os preços livres e reajusta os salários -agora, diariamente...- é evidente que você está ampliando as chances de as empresas aumentarem preços, já que os consumidores terão poder aquisitivo para absorver as altas.
Entenda-se bem: ninguém está dizendo que os salários provocam inflação. Mas é óbvio que, com sua indexação diária, o governo não poderá usá-los como arma para conter o consumo e, teoricamente, tentar provocar queda da inflação, como a equipe FHC queria fazer. Moral da história: o combate à inflação passou a depender de outras armas.
Alternativa - O país precisa acordar para esta realidade, urgentemente. Congresso, sindicalistas e formadores de opinião têm pela frente o desafio de aceitar que, apesar dos pesares, a queda da inflação passou a depender mais uma vez do entendimento, e não da repressão.
Os dados sobre remarcação de preços, citados anteriormente, mostram que há imenso emocionalismo dominando a cena, com uma avalanche de informações distorcidas, isto é, responsáveis pela convicção de que "todos" os setores especulam e a explosão inflacionária é inevitável.
A realidade, felizmente, é outra. Há focos de especulação, sim. Mas eles são facilmente identificáveis e, exatamente por serem restritos, podem ser enfrentados pelo governo. É isso que a sociedade tem que exigir.
Demagogia - Não é hora de ataques indiscriminados contra os empresários, mas ao contrário: é hora de obter o apoio dos setores que agem com seriedade. Não é hora também de medidas punitivas genéricas, como a redução de alíquotas de importação: em todos os setores, há empresas que não especularam e no entanto serão igualmente prejudicadas pelo escancaramento do mercado. Repita-se: é hora de administrar, caso a caso, corpo a corpo.
Objetividade - Para começar, o governo deveria tomar medidas contra dois setores que, comprovadamente, vêm praticando preços abusivos. Tanto no caso dos remédios, quanto do setor de carnes e derivados, o assessor responsável pela área de preços, José Milton Dallari, tem mostrado excessiva condescendência -no mínimo.
Em relação aos remédios, houve um aumento abusivo, perto dos 60% em janeiro. Dallari, após negociações com os laboratórios, candidamente anunciou que "para janeiro, não se pode fazer mais nada, mas em fevereiro os reajustes serão iguais à inflação".
Sequer lhe ocorreu que em fevereiro o "excesso" de aumento poderia ser compensado. Distração, claro. Mas, em fevereiro, os laboratórios ultrapassaram a inflação outra vez. Em março, esboça-se a mesma tendência.
E a carne? Dallari diz que o preço (em dólar) da arroba do boi está 20% acima do praticado ano passado. Meia verdade. Ou meia mentira. Acontece que, no ano passado, a carne já estava de 20% a 30% mais cara do que a média normal para esta época, de safra.
Para sermos exatos, pois o sr. Dallari pode estar esquecido, em fevereiro de 1992 a arroba de boi custava US$ 16,50. Na última semana, bateu nos US$ 22. O setor impõe preços artificiais há praticamente dois anos. E continua a reajustá-los, mesmo na semana passada. Está provocando inflação, pois os preços da carne bovina estão puxando violentamente os preços dos suínos e derivados.
Detalhe, que talvez o assessor Dallari não tenha comunicado ao ministro: os preços do milho caíram fortemente, com a entrada da nova safra. De até US$ 9 para até US$ 6 a saca. Os preços da carne deveriam estar caindo. Puxando a inflação para baixo.
Para finalizar: as projeções indicam uma inflação mais baixa (ou menos alta). O Banco Central precisa rever o ritmo de reajuste da URV e dos juros.

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