São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 1994
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"Schindler's List" toca o coração tapuia

BARBARA GANCIA
COLUNISTA DA FOLHA

"A Lista de Schindler", de Steven Spielberg, deve fazer pelo holocausto o que "Apocalypse Now", de Francis Ford Coppola, fez pela guerra do Vietnã. A despeito das firulas hollywoodianas, ambos permitem ao espectador apalpar a dor, a desolação, o frio, a fome e o terror que permearam as duas guerras.
Vi o filme de Spielberg e saí do cinema em frangalhos. Também pudera. Conheço intimamente a barbárie promovida por Hitler, Himmler e seus comparsas -personificada brilhantemente em "Schindler's List" pelo carrasco Amon Goeth, papel que deve dar ao ator Ralph Fiennes o Oscar de coadjuvante.
Eu explico: assim como tantos outros tapuias, sou uma espécie de "gato que nasce no forno". Nasci em terras brasilis e, a despeito do sangue 100% italiano, me considero um "biscoito" 100% made in Brazil. Sou capaz de sair no tapa com o eventual carcamano impertinente que me venha com ladainhas do tipo: "Roberto Baggio é mais jogador do que Pelé"; "Este ano as Ferraris vão andar na frente de Ayrton Senna" ou outras falácias do gênero.
Quando Hitler invadiu a Polônia em 1.º de setembro de 1939, meu pai morava em Turim. Tinha 18 anos. Alistou-se e, assim que o Fuehrer descartou os préstimos de Mussolini, foi capturado pelos alemães.
A serviço da resistência, minha mãe, na flor da puberdade, carregava bombas escondidas em cestas de piquenique a bordo dos raros trens que circulavam pelo norte da Itália.
Durante cinco anos, no auge da juventude, eles interromperam os estudos, amargaram os duros invernos piemonteses sem calefação e não viram a cor de sabonetes, cigarros, carne, chocolate ou luz elétrica. Suas casas foram pilhadas e membros de suas famílias acabaram torturados e mortos pelos nazistas.
Por essas e outras, meus irmãos e eu crescemos sob os auspícios da frase: "Vocês não passaram a guerra", como se, em nome de nossa formação, fosse possível fabricar uma guerra com poderes educativos.
Mas a guerra de verdade sempre fez parte de nossas vidas. Basta dizer que, na juventude, meu pai falava o alemão com fluência. Recentemente, ele se inscreveu no Instituto Goethe. Para reaprender a língua que Hitler eliminou de sua mente.

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