São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um ultraje à cidadania

LUÍS NASSIF

Não há nada que afronte mais a noção de cidadania do que a arrogância e a falta de limites do governante. Este é um servidor do cidadão. É escolhido para administrar impostos rateados entre os contribuintes.
Em países civilizados é ofensa mortal para qualquer cidadão a tentativa de quem quer que seja, de tirar vantagens de suas relações com o poder público, ou se comportar como proprietário de bens episodicamente colocados sob sua responsabilidade.
A democracia é um sistema em que as diversas instituições que a compõem operam permanentemente na busca do equilíbrio de forças. Não se admite, em hipótese alguma, que este equilíbrio seja rompido.
Por isso mesmo, cada vez que um governante consegue impor sua vontade pessoal, sem dispor de argumentos legítimos, ofende todas as instituições incumbidas de manter este jogo de equilíbrio.
O que o prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, conseguiu fazer com o sistema de lixo da cidade demonstra que o centro mais civilizado do país é uma selva. Imprensa, Poder Judiciário, Ministério Público, Poder Legislativo? Somos todos uma enorme ficção civilista, que ganhou aparência de verdade só em função do escândalo Collor.
Cartel do lixo
Havia indícios consistentes de um cartel do lixo esbulhando o contribuinte. Num certo momento, na administração passada, houve uma licitação de emergência que permitiu o ingresso, no setor, de uma empresa não-articulada com o cartel –a SPL, de Sorocaba.
Em pouco tempo, os serviços oferecidos por ela se revelaram mais eficientes e mais baratos do que no restante da cidade –conforme, aliás, o próprio secretário de Administração, Reinaldo de Barros, reconheceu para a Folha, ao atribuir à "roubalheira" a diferença de preços no setor (na Mooca cobrava-se 3,5 vezes mais que na Penha, atendida pela SPL).
No fim do ano passado, a prefeitura –sob a coordenação do secretário Barros– resolveu abrir nova licitação para o lixo. Tinham-se uma nova lei das licitações, impedindo manipulações maiores, e uma empresa disposta a enfrentar o cartel. Vencendo ou não, obrigaria a uma redução nos preços e a uma melhoria na qualidade dos serviços oferecidos.
Primeiro, o secretário Barros definiu um preço mínimo para os serviços. A alegação dos licitantes é que o preço mínimo visa afastar as propostas inexequíveis. O que ocorre, em geral, é que força a um empate, remetendo o desempate para o critério técnico –onde o licitante pode recorrer a expedientes variados para selecionar seus favoritos.
No caso do lixo, decidiu-se, entre outras coisas, que os candidatos deveriam apresentar um mapa completo de 120 mil ruas da capital, com indicação de mão e contramão –tarefa impossível para quem não tivesse intimidade com os meandros da administração municipal.
Liminar cassada
A SPL impetrou uma liminar barrando a licitação, com base em argumentos lógicos: podia oferecer preço menor e não havia como considerá-lo inexequível porque, justamente, era o preço que já vinha praticando nos seus serviços.
Seguiu-se um processo de perseguição implacável contra a empresa, culminando com seu afastamento dos serviços da Penha, seguido do usual: convite a três empreiteiras para assumirem seu lugar, desistência de duas e confirmação da terceira –Vega Sopave, ligada ao grupo OAS, e envolvida no sistema de financiamento da Paubrasil.
Agora, uma sentença da juíza Cristiane Sampaio Alves Mascari Bonilha, levanta a liminar abrindo espaço para a concretização da operação. Numa interpretação fantástica, a juiza considerou que, não impondo preços mínimos, a licitação estaria protegendo o concorrente que, conhecendo o serviços, oferecesse o menor preço –como se o papel de uma licitação não fosse justamente o de criar o ambiente mais competitivo, para obter os menores preços possíveis.
Ao mesmo tempo, considerou que o critério de julgamento adotado "é única e exclusivamente o preço mais vantajoso para a administração". Vantajoso para quem, cara pálida?
Enquanto não for bem explicada, esta história há de ficar como um espinho atravessado na garganta de todos aqueles que, tendo brio, ainda acreditam no papel regulador das instituições em ambiente democrático.

Texto Anterior: Thompson conquista conta de sorvetes Nestlé
Próximo Texto: Contratos continuam usando cruzeiros reais
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.