São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 1994
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O absurdo do Holocausto parece ficção

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"A Lista de Schindler", filme de Spielberg, tende a suscitar polêmicas descabidas. É como se as pessoas quisessem "polemizar" com a obra, sem saber exatamente como.
A carreira de Spielberg, voltada para filmes na sua maioria escapistas e infantilóides, inspira essa atitude. É como se qualquer coisa "made in Spielberg", por mais séria que seja, estivesse sob suspeição.
Excessos espetaculares, efeitos especiais, sentimentalismos extremos foram vistos em "A Lista de Schindler".
Também a personalidade do herói se presta a polêmicas. Oskar Schindler, industrial e membro do Partido Nazista, salvou mais de mil judeus durante a guerra. Foi um herói ou um oportunista? Até que ponto simpatizamos com ele? O retrato feito pelo filme será verdadeiro ou foi romantizado por Spielberg?
Desconfio que as intenções polemizantes em torno de "A Lista de Schindler", não se sustentam muito. O filme vai tão longe na descrição dos horrores nazistas, que de alguma forma se faz inútil e bizantino criticá-lo.
É difícil separar, aliás, o eventual desagrado face ao filme do desagrado intenso que a realidade dos campos de concentração e do Holocausto despertam no espectador.
Polemizar com "A Lista de Schindler" talvez seja, no fundo, uma maneira de manifestar nosso horror, nossa incredulidade, diante do que se passou com os judeus.
Dessa perspectiva, o filme de Spielberg se coloca acima de qualquer crítica que lhe queiramos fazer. Pouco importa o kitsch das últimas cenas, a apelação cruciante de diversos episódios. "A Lista de Schindler" aparece diante dos olhos como um monumento terrível, opaco, real.
Tudo aquilo aconteceu. Frente a essa constatação, o filme se dissolve enquanto produção hollywoodiana, enquanto tentativa de Spielberg no sentido de fazer algo sério. Esses problemas deixam de nos interessar.
Assistir a "A Lista de Schindler" se transforma, então, numa experiência que transcente e renova o simples hábito de ir ao cinema. É quase insuportável.
Acontece algo interessante. Você vê o filme, segue a história, achando sempre que não vai aguentar a encenação de coisas tão horríveis. Quando o filme acaba, você se sente aliviado, purgado do que ocorreu.
Mas, em seguida, alguns detalhes, algumas lembranças vêm à mente, tão nítidas quanto se fossem uma memória de acontecimentos realmente vividos e tão inacreditáveis quanto se fossem pura ficção.
O filme é todo feito desses detalhes. Schindler nota uma camada de pó sobre sua lumusine. Custa a notar que esse pó estava vindo dos fornos crematórios, era cinza dos judeus assassinados em Auschwitz. Ou então, há o momento em que um caminhão de crianças é levado para as câmaras de gás. As crianças não percebem e dão tchauzinhos às mães que gritam, desesperadas.
Apelação? Certamente, é quase impossível aguentar cenas como essas. Mas não dá para acusar Spielberg de apelação. A realidade foi assim. Não foi uma realidade feita apenas de horrores impessoais, de massacres contabilizados nos livros de história, mas algo de mais mesquinho, de mais pormenorizado, de mais cruel e total, à medida que atinge cada permenor, cada segundo vivido durante o Holocausto.
Sente-se que, tão ou mais horrível do que o assassinato em massa, era o modo com que o cotidiano se organizava sem razão, às cegas, nos campos nazistas.
"Não se deve tentar compreender", dizia um companheiro de prisão ao escritor e químico Primo Levi, que deu dos campos de concentração um testemunho impressionante nos seus livros "É isto um Homem" (editora Rocco) e "Os Afogados e os Sobreviventes" (editora Paz e Terra).
Não há o que conpreender. Goeth, o chefe do campo de concentração retratado por Spielberg, acorda de manhã, espreguiça-se, pega um fuzil com mira e atira a esmo sobre os desgraçados que se deslocam carregando cargas nos ombros.
Nessa cena vemos um pouco da genialidade do diretor. É claro que ele está "apelando" para nossa indignação. É claro que ele está sendo, por outro lado, meramente documental. Mas Spielberg põe Goeth fumando. O carrasco tinha deixado o cigarro apoiado sobre o parapeito da varanda. Sem largar o fuzil, Goeth abaixa-se, inclina o corpo, até pegar com os lábios o cigarro e continuar sua matança matinal.
O virtuosismo de Spielberg em dar conta de pequenos acontecimentos que se imantam no sentido geral do filme é talvez sua maior qualidade como diretor, a marca do seu autêntico gênio. Trata-se, digamos assim, de uma incompreensibilidade "que faz sentido", de um pormenor arbitrário que reforça o conjunto.
Outro fator "spielberguiano" no filme é, sem dúvida, a imagem do herói, o senso do "happy end".
Gigantesco, ao lado dos judeus curvados e magros, Oskar Schindler aparece como real paladino spielberguiano. Está presente em todas as situações difíceis, resolve todos os problemas, é infalível no charme e no sangue-frio.
Sem dúvida, Schindler gastou toda a sua fortuna para corromper oficiais nazistas e salvar os operários judeus de sua fábrica. Foi um ato belíssimo. Envolvia, àquela época, grande dose de coragem pessoal. Mas ele também era um oportunista, buscando lucro fácil durante a guerra e convivendo alegremente, embora à distância, com os monstros da SS.
Será que podemos "compreender" o seu caráter? Será que suas motivações são claras? Não, porque nada era claro e tudo era incompreensível naquele momento. A atitude de Schindler no fundo parece tão acidental (para o bem) quanto as atitudes do Goeth eram inexplicáveis em sua brutalidade.
E imagine-se a situação dos judeus que não pertenceram à lista de Schindler. Na massa dos condenados à câmara de gás, alguns nomes, os de Schindler, são salvos. Como não pensar que nesse fato há mais uma evidência da irracionalidade, do acaso, da incompreensibilidade absoluta e cega que era a lógica do Holocausto?
Não, não há nada a entender, a interpretar ou a criticar num filme como esse. Spielberg é um diretor genial, não importa se "escapista" ou se "sério". Mas "A Lista de Schindler" não tem autor; confronta-nos com o absurdo do nazismo, com a estética do incidente pavoroso, com os horrores determinados da história, com a maldade e com a boa esperteza de cada ser humano. O autor desta história insuportável e comovente mereceria ser chamado de Deus, se existisse um; ou de demônio, se este não tivesse sido derrotado.

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