São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 1994
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Solidão é o mote da peça, diz dramaturgo

DA REPORTAGEM LOCAL

Plínio Marcos defende que a característica principal dos personagens de "Navalha na Carne" é a solidão. "Quem olha o texto apenas sob a ótica da violência não entendeu nada." Para o dramaturgo, a peça aponta os três únicos caminhos que o ser humano pode seguir numa sociedade capitalista. "Ou o sujeito vende a alma como a prostituta Neusa Sueli, ou é espiritualmente frágil como o homossexual Veludo, ou explora os outros como o gigolô Vadinho."
A primeira montagem paulistana de "Navalha", em 67, tinha Ruthinéa de Morais, Paulo Vilaça e Edgar Gurgel Aranha no elenco. Leia a seguir um dos trechos da peça:
Vado - Não força a idéia, piranha velha. Você é a veterana das veteranas.
Neusa Sueli - Tenho só 30 anos.
Vado - Coroa!
Neusa Sueli - Porco! Nojento! Você pensa que não manjei a tua jogada com o Veludo?
Vado - Deixa de história. Vocês antigas vêem malícia em tudo.
Neusa Sueli - Só sei que você me embrulhou o estômago.
Vado - A vovó das putas todas é metida a família, é?
Neusa Sueli - Vovó das putas é a vaca que te pariu.
Vado - Limpa essa boca quando falar da minha mãe. Se folgar comigo, te arrebento.
Neusa Sueli - Então não me torra a paciência.
Vado - Só estou falando a verdade. Você está velha. Outra noite, cheguei aqui, você estava dormindo aí, de boca aberta. Roncava como uma velha. Puta troço asqueroso! Mas o pior foi quando cheguei perto pra te fechar a boca. Queria ver se você parava com aquele ronco miserável. Daí, te vi bem de perto. Quase vomitei. Porra, nunca vi coisa mais nojenta. Essa pintura que você usa aí pra esconder a velhice estava saindo e ficava entre as rugas, que apareciam bem. Juro, juro por Deus, que nunca tinha visto nada mais desgraçado. Neusa Sueli - Pára com isso! Chega de escutar mentira!
Vado - Mentira? Eu é que sei! Senti uma puta pena de mim. Um cara novo, boa pinta, que se veste legal, que tem um papo certinho, que agrada, preso a um bagulho antigo. Fiquei bronqueado. Porra, ainda tentei quebrar o galho. Pensei comigo: mas de corpo ainda é uma coisa que se pode aproveitar. E sem te acordar, tirei a coberta, tirei tua camisola, tirei tua calcinha e teu sutiã. As pelancas caíram pra todo lado. Puta coisa porca! Acho que até um cara que saísse de cana, depois de um cacetão de tempo, passava nesse lance. Pombas, que negócio ruim era você ali dormindo. Juro por Deus, nunca vi nada pior. Se não fosse o desgraçado do ronco de porca velha, eu tinha mandado te enterrar. Porra, e não se perdia nada. Me larguei. Não aguentava.
Neusa Sueli - E por que não se mandou de vez?
Vado - Fiquei esperando uma chance de te jogar isso no focinho.

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