São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 1994
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Wenders balança entre reflexão e fetichismo

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

A partir de hoje você já pode saber o que aconteceu com Wim Wenders. O Museu da Imagem e do Som (av. Europa, 158, Jardins, tel. 852-9197) apresenta, com entrada franca, até o dia 27 a mais completa retrospectiva do cineasta alemão já realizada no Brasil, deixando de fora apenas o último longa-metragem, "Tão Longe, Tão Perto" ("Faraway, So Close"), e o último curta, recentemente exibido no festival de Clermont-Ferrand (França).
A partir de hoje você vai poder avaliar com os próprios olhos o que aconteceu com esse cineasta, responsável por alguns dos filmes mais interessantes e representativos de um novo existencialismo que germinou nos anos 70 e se consagrou nos anos 80, apenas para entrar em derrocada nos 90. Quem acompanha Wenders dos primeiros curtas, no final dos anos 60, até "Até o Fim do Mundo" pode perceber que o cineasta sempre teve um projeto, que foi sendo depurado e, a partir de determinado momento, implodido por questões tratadas pelos próprios filmes.
Parece espantoso que alguém que tenha despertado uma nova cinefilia entre os jovens dos anos 80, a ponto de ser idolatrado como uma espécie de astro de rock, um diretor responsável por obras-primas carregadas de um existencialismo ao mesmo tempo melancólico e arrebatedor, como "Alice nas Cidades", "No Decorrer do Tempo" e "O Amigo Americano", tenha de repente perdido a mão e caído na caricatura de "Até o Fim do Mundo" ou "Tão Longe, Tão Perto" (continuação malsucedida do belo "Asas do Desejo"). É espantoso que alguém cuja obra tenha sido capaz de produzir tantos seguidores e um público tão fiel possa subitamente cair em desgraça e provocar só escárnio e desprezo nesse mesmo público.
Alguns podem alegar que houve um amadurecimento desses espectadores e do mundo, que a "ingenuidade" de grande parte do cinema de Wenders, não só aceitável mas sedutora nos anos 70 e 80, tornou-se insuportável e grotesca. A vantagem de uma retrospectiva como esta é provar que tal explicação para a decadência é falsa. As obras-primas continuam sendo obras-primas. "O Amigo Americano", para citar apenas uma delas, é um filme que transborda uma sensibilidade desmesurada e ainda hoje cria um fascínio e uma empatia difíceis de serem combatidos até pelo mais cético dos espectadores. A explicação da queda do cineasta está na própria obra.
Desde os primeiros curtas, nota-se que o projeto cinematográfico de Wenders segue simultaneamente por duas vias: uma espécie de fetichismo da imagem (a crença, como dentro de um pensamento mágico, de que a imagem é capaz de captar, registrar o real), em grande parte responsável pelo efeito existencialista dos filmes, e sua contrapartida: uma reflexão chorosa sobre a perda e a corrupção das imagens. Wenders oscila entre a criação de um mundo de empatia, que aspira o espectador extasiado para dentro da tela (a tentativa de criação de um cinema equivalente ao rock, cujos efeitos no público sejam análogos ao da música pop), e a condenação do comércio da arte num mundo pós-moderno, onde a proliferação de imagens se assemelharia a uma pornografia, ainda que de certa forma o diretor faça parte desse mundo.
Wenders oscila entre a criação de um novo realismo existencialista e um moralismo estético cujas lamentações por vezes beiram o cabotinismo. Filmes como "Alice nas Cidades" e "No Decorrer do Tempo" são os principais representantes da primeira tendência, e "Até o Fim do Mundo" o exemplo mais gritante da segunda, embora ambas estejam entrelaçadas ao longo de toda a obra, dentro da velha discussão do fim do cinema e do advento das imagens eletrônicas.
Grande parte desse moralismo foi sendo elaborado como resistência contra o desaparecimento do cinema autoral, a partir do movimento do novo cinema alemão e, em seguida, da experiência desastrosa do diretor com Hollywood (leia texto ao lado), apresentada metaforicamente em "O Estado das Coisas".
O principal problema de Wenders foi acabar privilegiando o lado discursivo dessa condenação da proliferação e do comércio das imagens (que soa inevitavelmente falso, visto o fascínio simultâneo do cineasta por esse mundo) em detrimento de um cinema mais descritivo, onde as mensagens eram menos claras (e, portanto, menos primárias), que o havia consagrado. O moralismo de "Até o Fim do Mundo", acusando o comércio das imagens e sua proliferação eletrônica de desvirtuar os valores mais básicos das relações humanas, como o amor e a família, transformando os homens em "viciados", mostra apenas a deriva em que o cineasta se encontra hoje.

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