São Paulo, quarta-feira, 13 de abril de 1994
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Deputada defende uso uniforme da língua

MARCELO TAS
ENVIADO ESPECIAL A LISBOA

Edite Estrela, 44, merece duplamente o sobrenome. Tem o "physique du rôle" (porte físico adequado à função) para encarar o papel da mulher madura, elegante e atraente da novela das oito. E também, com certa frequência, é acusada de "estrelismo" pela imprensa lusitana devido ao jeito atrevido de se atirar aos seus objetivos políticos.
Estrela é deputada federal e uma das mandachuvas do PS –o Partido Socialista português. Além disso, é a recém-eleita prefeita de Sintra –uma das cidades mais importantes (e lindas) de Portugal.
A deputada é uma das defensoras mais veementes do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, tema de seu último livro, dedicado ao ex-ministro da Cultura, Antonio Houaiss.
O divórcio ortográfico entre Brasil e Portugal vem de longe. Começou em 1911, quando Portugal decidiu aparar algumas arestas da língua de Camões sem consultar os brasileiros.
Foram tentadas reaproximações em 1945 e 1986, mas até agora pelas razões misteriosas que cercam o relacionamento nebuloso entre os dois países, o acordo linguístico continua empacado.
Primeiro de Janeiro de 1994 era a data para o Acordo entrar em vigor simultaneamente nos países que formam a CPLP –Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe.
Mas até hoje, ainda não foi discutido e ratificado pelo Congresso Nacional brasileiro. Estrela concedeu esta entrevista no gabinete da Câmara de Sintra.
Ela avisa que irá ao Brasil defender pessoalmente seu ponto de vista favorável ao Acordo numa visita oficial prevista para maio. Que os gajos do congresso estejam preparados porque Estrela é desembaraçada e dura na queda.
Folha - Antes de tudo, como devo chamá-la: sra. presidenta ou sra. prefeita?
Edite Estrela - Em Portugal, nós adotamos uma terminologia diferente do Brasil. Que decorre da própria organização do Estado. Portanto, em Portugal, ao invés de prefeita utilizamos presidenta (acentua a sílaba "ta", no feminino) da Câmara!
Folha - A senhora acredita que neste momento estamos falando a mesma língua?
Estrela - Acredito! Tenho certeza. Agora, cada uma delas com o seu percurso próprio. A língua portuguesa no Brasil teve um contexto diferente para se desenvolver e se implantar.
Mas as diferenças não são tão diferentes assim. Agora mesmo, neste pequeno retângulo que é Portugal, há várias diferenças de pronúncia, por exemplo.
Eu tenho mais dificuldades em entender os naturais da Ilha de São Miguel, nos Açores, do que para entender um carioca ou um paulista como você.
Folha - Em janeiro deste ano deveria ter entrado em vigor o Acordo Ortográfico firmado entre Brasil e Portugal. Por que isso não aconteceu?
Estrela - Porque o Congresso Brasileiro ainda não ratificou o Tratado. Este é um Tratado Internacional. Uma das cláusulas, digamos assim, deste Tratado é que ele só entra em vigor quando for ratificado pelo Brasil.
Portanto, enquanto o Congresso Brasileiro não proceder à ratificação, o Tratado não entra em vigor.
Folha - Se os congressistas pudessem ouvir sua voz agora, o que a sra. diria para convencê-los a ratificar o Acordo?
Estrela - Diria que o futuro da língua portuguesa está ligado a este Acordo Ortográfico. É desejável que haja uma única matriz ortográfica.
Isto projetará mais facilmente a língua portuguesa no plano internacional. Desse prestígio reverterão benefícios até econômicos e políticos para Portugal e Brasil e também para os países africanos.
Estou a falar mais em Portugal e Brasil por que a língua portuguesa para nós é a língua materna. Para os africanos, é a língua oficial.
Folha - Quais seriam os benefícios econômicos do Acordo?
Estrela - É o seguinte: quando se pretende abrir um leitorado de língua portuguesa numa universidade estrangeira, há sempre o obstáculo da existência de duas normas ortográficas oficiais.
Se o professor for português, indicará livros em português de Portugal. Se for brasileiro, em português do Brasil. Isso reverte em prejuízos para a indústria editorial de Portugal e Brasil.
Folha - Não é um benefício econômico muito pequeno?
Estrela - Não, porque representa uma abertura para toda a Europa. Ora, antes de nós, portugueses e brasileiros, percebermos a importância da ligação linguística, outros países já perceberam.
Como é o caso da comunidade anglófona, que há muito tempo já se constituiu. O mesmo fizeram os franceses com a comunidade francófona. E até os alemães e espanhóis já perceberam isso.
No caso de Portugal e Brasil, há uma ligação de grande afetividade, de sangue e de história. O expoente máximo desta união é a língua, que tem grandes potencialidades econômica e politicamente.
Folha - Parece que a tendência mundial é mesmo a dos países se unir em comunidades. Só que a esmagadora maioria dessas uniões se dão por interesses econômicos e comerciais e não por interesses linguísticos. Quem será que está equivocado: eles ou nós?
Estrela - Não, não é bem assim. Não podemos esquecer que Portugal está inserido no espaço Europeu. A partir do momento que exista essa comunidade lusófona, haverá maior facilidade dessas portas se abrirem para o Brasil.
Por outro lado, também para Portugal, é importante que se faça a unificação ortográfica antes da CEE selecionar as línguas dentro da Comunidade Européia.
Para que a língua portuguesa não seja subutilizada, é desejável que Portugal possa invocar a língua portuguesa como sendo falada não por apenas dez milhões (habitantes de Portugal), mas também pelos 200 milhões que a utilizam no Brasil e em África.
Folha - Isso me lembra um texto em prosa do vosso poeta Fernando Pessoa, em "A Grande Alma Portuguesa". Ele dizia que uma das causas da decadência do Império Português, era que o Império Português foi de conquista e não de cultura.
Estrela - Totalmente de acordo.
Folha - O que se busca agora é tirar o atraso de 500 anos de equívocos?
Estrela - Não. Agora, não há da parte de Portugal quaisquer intuitos imperialistas. Nunca nos consideramos proprietários exclusivos da língua portuguesa.
Aliás, já que você citou Pessoa, há aquela estafada citação dele: "Minha língua é minha pátria."
Quando um português vai ao Brasil, não se sente no estrangeiro. Aqui, se eu passar 20 km da fronteira, já me sinto no estrangeiro porque já é outra língua.
Folha - E na hora de escrever, brasileiros e portugueses irão se entender? Os portugueses vão concordar em perder suas vogais mudas, como em "exacto", ou "óptimo", como manda o Acordo Ortográfico?
Estrela - (desafiadora) Já concordaram. Aqui, o Acordo já foi ratificado pela Assembléia da República
Folha - Mas até hoje os portugueses continuam a escrever do mesmo jeito.
Estrela - (levantando a voz) Ora, por que o Acordo ainda não entrou em vigor! Depois que o Brasil ratificar o Acordo, haverá todo um trabalho de divulgação, de mentalização e sensibilização das pessoas para a nova ortografia.
Mas, isso não é drama algum. A ortografia não é a essência da língua, é apenas a aparência. É como se eu fizesse umas tatuagens na minha pele. Eu não deixaria de ser eu própria. Apenas teria uma aparência diferente, esquisita, estranha...
Folha - Eu só estou querendo levantar um problema prático.
Estrela - (se acalmando) Mas vai ficar muito mais simples. Hoje nós escrevemos "redacção", com um "c" que não se pronuncia; escrevemos "óptimo" com um "p" que não se pronuncia.
Como vai se explicar isso às crianças ou aos estrangeiros. É um horror, uma confusão. A partir do acordo: consoante articulada é consoante grafada; consoante não articulada, é consoante abolida. Pronto!
Folha - E as consoantes que se falam em Portugal e não se falam no Brasil, como na palavra "facto"?
Estrela - Aí, vão valer as duas grafias e o estrangeiro vai ter que saber que existem as duas palavras.
A língua portuguesa é a única língua do planeta que tem duas normas ortográficas oficiais. A do Portugal e do Brasil. É um caso único, um caso estranho.
Folha - Sra. presidenta, por que existe essa distância...
Estrela - (cortando) Falta de diálogo. Por que agora há necessidade de um acordo? Por que no passado houve um desacordo que surgiu mais concretamente no princípio deste século quando Portugal e Brasil decidiram incluir simplificações ortográficas sem conversarem entre si. Claro, afastarem-se.
Por isso agora, é agora mais difícil chegar a um acordo.
Folha - Por que Brasil e Portugal tem esse estranhamento e essa identificação tão forte?
Estrela - São irmãos desavindos. Irmãos que estão zangados por uma questão de herança ou qualquer outra coisa.
Miguel Torga, um grande poeta e escritor português, diz que Brasil e Portugal estão condenados a viver eternamente ligados por laços indestrutíveis de amor e ódio.
Folha - A sra. não acha que esta ligação mais parece uma paixão meio maluca de amantes do que uma briga de irmãos?
Estrela - É uma relação freudiana. De amor e ódio.
Folha - E como será que vai terminar esta história? As relações de paixão a gente nunca sabe como terminam...
Estrela - Eu sou otimista. Acho que vai prevalecer o amor sobre o ódio.

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