São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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O escândalo se ilumina

JANIO DE FREITAS

As coisas começam a ficar mais claras: o procurador da Justiça Eleitoral do Rio, Alcir Molina, informa que já nesta semana pedirá a cassação do governador Nilo Batista e do prefeito Cesar Maia. Embora considere que "não há, lamentavelmente, como caracterizar crime eleitoral por parte desses políticos". Não se deu ao trabalho, sequer, de atenuar a contradição entre o que concluiu das pretensas provas e a consequência que delas decidiu extrair.
As coisas ficam ainda mais claras se lembrarmos que a Procuradoria-Geral de Justiça do Estado do Rio, ao lançar o escândalo, o fez com a divulgação inicial apenas dos nomes de Nilo Batista e Cesar Maia, seguidos de uns poucos nomes identificados como de esquerda, por envolvimento com o jogo do bicho. Outros nomes só vieram a ser divulgados bem mais tarde, porque a cobrança de sua divulgação se tornou incontornável. Mesmo assim, a divulgação não foi completa.
A evidência de que a seleção não se fez pela importância dos mencionados, mas por critério político, ficou exposta com o sigilo que preservou um senador, o direitista Hydeckel de Freitas. Também o candidato do PSDB ao governo fluminense, Marcello Alencar, foi beneficiado pelo silêncio da Procuradoria até que Nilo Batista o dissesse presente no livro-caixa dos bicheiros. Alencar, não por acaso, foi o primeiro a se apressar em pedir a intervenção federal no Rio.
A principal dúvida está se restringindo a saber se o intervencionismo originou ou aproveitou o escândalo do bicho.
Pequena amostra
Minha visão dos meios de comunicação brasileiros é muito menos generosa, se o for em algum grau, que a do meu admirável colega Clóvis Rossi. Dizia ele na Folha de ontem que, "no caso do bicho, nenhum meio de comunicação inventou nada (...) Se a mídia arrastou para a lama o nome de algum eventual inocente, a culpa primeira é da Procuradoria" de Justiça do Estado do Rio.
Exceto a Folha, nenhum dos chamados grandes meios de comunicação guardou o mais preliminar cuidado ético de cercar os nomes com as devidas ressalvas: acusado de, citado como, e outras do gênero. Encamparam as acusações a tal ponto que se tornaram, eles próprios, os mais enfáticos acusadores de culpa acabada e indiscutível. Que acontecesse por descuido, uma ou outra vez, seria compreensível. Mas está sendo a norma, com todo o aspecto de atitude deliberada.
Com certeza deliberada é a igualdade de importância atribuída por aqueles mesmos meios de comunicação ao livro-caixa dos bicheiros e às folhas soltas e datilografadas sem o menor sinal de contabilidade autêntica. Se os nomes de dirigentes daqueles meios de comunicação aparecessem em uma folha datilografada, ligados a quantias de origem alegadamente comprometedora, isto bastaria para apresentá-los à opinião pública como jornalistas corruptos? E que não fossem eles, mas parentes ou correligionários seus, sabemos todos que a resposta não mudaria.
Não têm faltado apenas ressalvas e verificações. Há também criações dos meios de comunicação, não originárias, na sua forma, da Procuradoria. Manchete de um jornal carioca: "Juiz de menores está na lista do bicho". Pode haver alguma dúvida de que se trata de acusação pessoal, de que o juiz Liborni Siqueira recebeu dinheiro do bicho? Mas o texto, também na primeira página, diz isto: "No livro-caixa da contravenção, apreendido na fortaleza de Castor de Andrade, o pagamento é citado como 'doação para o orfanato de menores (dr. Liborni)', sem especificar a doação. Liborni, que dirige a Associação de Solidariedade à Criança Excepcional, admitiu que mantém ligações com vários orfanatos mas negou que tenha recebido dinheiro da contravenção".
Outro jornal carioca, não menos criativo que o anterior, informou em manchete que "Cofres apontam ligação entre bicho e Medellin". Talvez até viessem a apontar, mas só depois de abertos, o que nem acontecera, quanto o mais exame do material. O jornal não sabia? Assim começava o segundo parágrafo do texto: "Os cofres, guardados no Quartel Central da PM, serão abertos hoje à tarde".
De volta ao primeiro jornal, no dia 14, quinta-feira, os leitores recebiam uma manchete sensacional: "Bicheiros subornam PMs, arrombam cofre lacrado e roubam documentos". Notícia tão rica que exigiu duas linhas de manchete. Mas cinco dias antes o arrombamento já estava noticiado. Você, leitor da Folha, pôde encontrá-lo na edição do domingo 10. Só que ninguém, nem o jornal da manchete, falara em documentos. Pela simples razão de que inexistiam no cofre. Descoberta nova do jornal? O texto, lá na 12ª página, dizia do que foi tirado do cofre: "Foram levados US$ 5 mil, CR$ 800 mil, jóias, taças de cristal e, POSSIVELMENTE, documentos comprometedores". As maiúsculas são minhas.
Com um "possivelmente" usado assim, o jornal podia ter posto qualquer coisa dentro do cofre. Não foi à toa que o advérbio só apareceu, com o pretenso achado, na 39ª linha do texto. Aliás, na falta dos documentos comprometedores, o jornal comprometeu os seus correligionários da Procuradoria: documentos comprometedores no cofre denunciariam a inépcia do Procurador-Geral e dos promotores, porque foram eles que, sem fazer segredo disso, deixaram no cofre o que não interessava à sua investigação.
Só o atual escândalo do bicho me oferece vários capítulos do livro que não sei se escreverei sobre os meios de comunicação brasileiros.

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