São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Por um punhado de manchetes

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

Não se fala em outra coisa: a lista do bicho está no centro das atenções da imprensa nos últimos dias. O país tem, sim, outros eventos importantes acontecendo. A revisão constitucional, por exemplo, vai ganhando um enterro precoce sem deixar herança que se possa comemorar. Uma denúncia de que mendigos estão comendo carne humana em Pernambuco pôde ser comprovada. O país fechou o acordo da dívida com os bancos credores. Mas nada atraiu tanto esforço de reportagem na semana que passou como a lista de nomes apreendida no escritório de Castor de Andrade.

Nisso, a imprensa acerta. Onde ela erra, e grosseiramente, é no tom dessa que deveria ser uma cobertura cautelosa porque envolve reputações, farsas e mistificações, política e polícia, Congresso e até Betinho, a unanimidade. Diante da possibilidade de ver reeditada no Brasil uma Operação Mãos Limpas como a que sacudiu a Itália, a imprensa está evidentemente maravilhada –e anda trocando seu compromisso com a precisão, a isenção e a verdade por um punhado de manchetes.

Para começo de conversa, a chamada lista do Castor é a lista de Antonio Carlos Biscaia, o procurador-geral de Justiça no Rio, responsável pela apreensão da papelada e pela divulgação dos nomes (alguns nomes) contidos nela, em esquema conta-gotas. Biscaia escolheu quem denunciar na imprensa, quando e como denunciar. Não apresentou a lista inteira até agora nem provas do que diz sobre os nomes que pinçou dela, e baseou suas palavras apenas numa decantada reputação de inimigo da contravenção carioca. Bastou para que os jornais fizessem alarde com os nomes mostrados pelo procurador-geral, sem se incomodar com a possibilidade de que Biscaia pudesse estar fazendo ou servindo a qualquer tipo de jogo e, mais, sem revelar isso para os leitores.

A imprensa agiu motivada pelo fato de que um procurador-geral é um procurador-geral, e suas declarações são as de uma autoridade constituída exatamente para denunciar criminosos e produzir investigações. Portanto, se há exagero ou inverdade é no que diz Biscaia, não no que escreve a imprensa. Só que, ao leitor, não se diz isso, nem se apontam os eventuais exageros ou inverdades do procurador-geral. Mais ainda: Biscaia é uma autoridade de um tipo bem especial, daquelas que têm alvo certo (o bicho) e um inegável gosto pelos holofotes (da imprensa). O leitor também não conhece as implicações disso porque os jornais, revistas, rádios e TVs não contam a ele. Onde se tentou fazer um perfil de Biscaia, ele foi uma louvação como a publicada em "O Estado de S.Paulo" da semana anterior ("conseguiu muito mais do que arrancar a máscara de benemerência dos bicheiros") ou pela "Veja" que circulou semana passada ("seu lugar no Rio de Janeiro de repente parece maior do que o cargo de procurador-geral da República de Aristides Junqueira").

Ao bajular seu mais novo herói, a imprensa abre manchetes desprovidas de espírito crítico para tudo o que ele diz –mesmo quando ele diz que não vai submeter a lista do bicho à perícia para atestar sua autenticidade, ou que vai denunciar dezenas de nomes sem promover antes as investigações necessárias. Na quarta-feira, Janio de Freitas escreveu na Folha que a lista pode ser uma armação grosseira. Argumentou longamente sobre suas dúvidas. A reação de Biscaia foi, óbvio, a de desconsiderar as evidências apresentadas pelo jornal, ainda que levantadas por um de seus mais bem-sucedidos (em termos de denúncias, especialmente) repórteres. Até aí, repito, era o óbvio.

Espantosa mesmo foi a reação da própria Folha, que logo em seguida se esqueceu da manchete da quarta-feira e voltou a dar crédito incondicional à lista, e do restante da imprensa que, em vez de investigar o que poderia ser um "furo" da Folha, apressou-se em abrir mais manchetes ainda para que Biscaia repetisse que os nomes são quentes. Houve até quem, contrariando o mais básico dos princípios do bom jornalismo –aquele que manda duvidar–, atestasse por conta própria a autenticidade dos papéis. "A lista é verdadeira. Falta apenas que seja divulgada corretamente –isto é, integralmente– e levada às últimas consequências", escreveu "O Globo" em editorial de primeira página na última sexta-feira. O jornal não explicou aos leitores de onde tirou sua conclusão tão definitiva, mas não esconde que aposta na autenticidade da lista porque ela atingiu o coração do brizolismo, seu inimigo número um.

Sem saber direito quem é e a que veio Antonio Carlos Biscaia, sem saber direito se a lista é autêntica ou foi "plantada", e sem saber direito como foi que ela chegou às mãos do procurador-geral (as versões são fantasiosas e divergentes), pobre do leitor. Fica perdido no meio de um noticiário que ocupa páginas e páginas dos jornais (duas por dia, no mínimo, nesta Folha), submetido à tortura de ter que acompanhar denúncias, pedidos de desculpas, desmentidos, "outros lados", promessas de autoridades a respeito da repressão ao jogo do bicho e por aí vai, sem muita esperança de que a lista do bicho não vire, ela também, mais uma pizza.
A imprensa, se vê, tem ainda muito o que avançar e aprender sobre esse bicho-de-sete-cabeças chamado Brasil.

Texto Anterior: Acordo tem destaque no 'Times'
Próximo Texto: O escândalo se ilumina
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.