São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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'Nunca usei camisinha', diz padre com Aids

AURELIANO BIANCARELLI

Erramos: 20/04/94

O padre João Monteiro, descobriu que era portador do vírus HIV em maio de 1993, e não em 1990, como consta na reportagem.
'Nunca usei camisinha', diz padre com Aids
João Batista Monteiro, 42, quer abrir uma casa para abrigar religiosos doentes e portadores do vírus HIV

Na semana passada, os bispos da 32ª Assembléia Geral de Itaici discutiram o drama dos padres com Aids. A sessão foi fechada. Em São Paulo, num bar da av. São João, o padre João Batista Monteiro, 42, contou sua vida como homossexual e portador do HIV.
Pelas regras da Igreja, Monteiro está "cometendo uma contravenção contra o compromisso do celibato que assumiu".
"A Igreja vai propor a ele um retiro para que reflita sobre suas atitudes", disse o monsenhor Arnaldo Beltrame, porta-voz da Arquidiocese de São Paulo.
"Se não mudar, será afastado do exercício do ministério". Pelas leis da Igreja continuará padre.
"A Igreja não recrimina nem pergunta como o padre se infectou", diz Júlio Munaro, 64, padre coordenador da Pastoral da Saúde.
Léo Pessini, 38, capelão do Hospital das Clínicas, diz que 27 padres morreram com Aids em hospitais de São Paulo, de 87 a 93.
O número seria maior. Padre Monteiro conhece vários que morreram sem informar a doença. Há três semanas, morreu um pároco da zona norte da capital.
"Conheço vários que vivem escondidos e pelo menos um que vive oprimido pelos seus superiores", diz Monteiro. Talvez por isso, ele queira abrir em São Paulo uma casa que possa abrigar padres e outros doentes de Aids.
"Faço um apelo a todos os colegas, para que se libertem da coação de seus superiores e venham morar nesta casa."
Monteiro nasceu no Rio Grande do Norte e cursou o seminário em São Paulo, onde viveu de 76 a 82. Foi pároco do município de Cláudia, no Mato Grosso.
Em 1990 descobriu que estava com Aids. Ele é apenas portador do vírus e está bem de saúde. Abaixo, a entrevista que concedeu.
FOLHA - O senhor diz que é homossexual e que pegou o vírus em relações sexuais. O senhor não usava preservativo?
Monteiro – Antes de saber que estava infectado, nunca usei preservativo. Nunca gostei, me tirava do natural. Depois que soube, uso para evitar que o outro se contamine e que eu me recontamine.
Folha - Como o senhor vive sua sexualidade?
Monteiro – Eu já estive em sauna, mas não frequento pontos de encontro ou bares exclusivos. Prefiro deixar acontecer.
Os padres raramente têm um caso com outro padre. A maioria procura parceiros distantes da vida eclesiástica. Como eu, eles preferem parceiros anônimos, parceiros de passagem, que não se sabe o nome, nem para onde vai.
Folha - O senhor nunca se apaixonou por um parceiro?
Monteiro - Seria uma grande utopia um homossexual querer encontrar o verdadeiro amor. Haverá sempre infidelidade entre homens.
O homossexual é inseguro quando não se aceita, e quando quer alguém só para ele. Homem é assim, você está com ele e ele já está olhando para outro. Não acredito que possa haver felicidade entre dois homens que vivam juntos.
Folha - O senhor sempre foi homossexual?
Monteiro - Antes de ser padre tive namoradas, cheguei a ser noivo. Hoje me sinto bem ao lado dos homens, mas jamais dormi com um deles na mesma cama. Na minha cabeça há uma resistência. São dois pólos iguais, me sinto abafado. Depois da relação, cada um vai dormir no seu quarto.
Folha - É mais fácil ser homossexual dentro da Igreja?
Monteiro – O celibato acaba sendo uma forma de proteger o homossexual. As pessoas sempre desconfiam de um solteirão que não se casa, mas não desconfiam de um padre.
Folha - O senhor não se sente culpado?
Monteiro - Eu vivo o Evangelho dentro da minha sexualidade. Quando estou no púlpito, me coloco como pecador. Me sinto tranquilo, cumprindo uma missão para a qual Deus me dá forças.
Os padres homossexuais vivem com sentimentos de culpa diante do bispo e dos paroquianos.
Folha - Como é sua vida sexual hoje?
Monteiro - É plena, livre, mas não é desenfreada. Atualmente ando pelas ruas, conheço os garotos de programa, eles me conhecem. Tento conversar, convencê-los a se precaverem contra a Aids. Trato-os com carinho, convido-os para jantar. Eles sabem que sou padre.
Folha - O senhor vai abandonar o sacerdócio?
Monteiro - Decidi renunciar às atividades paroquiais eclesiásticas. Mas continuo sacerdote, celebrando missa. Hoje prefiro compromissos com a população das ruas, que não tem pastor próprio.
Folha - Como o senhor foi tratado depois que revelou estar com Aids?
Monteiro Com muito carinho. Meu bispo em Sinop, no Mato Grosso, d. Henrique Froehlich, esperou que eu chorasse bastante. Depois me perguntou o que poderia fazer por mim. Não quis saber como eu peguei o vírus.
Em São Paulo, d. Fernando Penteado (bispo regional da Lapa), também me tratou muito bem. Morei em sua casa. Há três semanas, quando viajou, me ofereceu sua cama. Foi um gesto que me marcou.
Folha - E os padres, como tratam o senhor?
Monteiro - Eles não me ajudaram.
Folha - O senhor acredita que um dia a Igreja mudará sua posição?
Monteiro - Ela jamais vai permitir que um padre viva sua sexualidade, muito menos sua homossexualidade. Alguns bispos, raras exceções, podem chegar a discutir essa questão com seus padres, inclusive para alertá-los sobre os riscos da Aids. Mas quando falam em nome da Igreja, negam tudo isso. Os bispos não mantêm uma relação plena com seu clero.

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