São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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O escândalo do bicho

WALTER CENEVIVA

No novo 'Terror', acâmara, o microfone e a manchetesubstituema guilhotina

O leitor pode estar certo de que a presunção de inocência garante mais o direito de todos do que a denúncia generalizada de irregularidades supostas ou reais. Está na hora de voltar à prudência da verificação serena e atenta de cada alternativa da criminalidade possível e, ainda mais intensamente, de garantir que a presunção constitucional de inocência seja preservada.
Agora que o procurador-geral da Justiça do Rio de Janeiro gozou intensamente seus 15 minutos de fama, deve-se aplaudir a sabedoria de Jânio de Freitas resumida numa frase lapidar: "No escândalo do bicho tudo precisa recomeçar do zero". Jânio anotou mais: que a procuradoria fluminense sequer submeteu documentos e disquetes à verificação prévia de sua veracidade, preferindo a afoiteza da acusação pública.
Depois, a ombudsman Junia Nogueira de Sá completou a análise sobre o dever de noticiar com responsabilidade. Para quem pensa em termos jurídico-constitucionais, a semana foi de Jânio e de Junia.
Na apuração dos fatos é possível voltar à estaca inicial. No escândalo não é. Sobrarão consequências para as reputações atingidas, que tornam justa a reação irritada do prefeito de São Paulo. A divulgação do suposto envolvimento ocorreu sem prévio aprofundamento das investigações, que preservasse o nome dos inocentes. Com isso beneficiou os culpados.
Também resulta do episódio um perigo para a plena liberdade da comunicação social, estimulado pela intolerância dos que a querem enterrar. Hoje, a pá que facilita a sepultura é a aceitação imprudente dos exageros das fontes. Imprudência não é sinônimo de divulgação de notícia falsa, mas de recolhimento de qualquer denúncia sem o devido juízo crítico. Dou um exemplo. Se qualquer um dos 300 "picaretas" referidos por Lula, ou alguém sério ou farsante em busca de notoriedade -mas provido de alguma forma de autoridade oficial- atribuir irregularidades a alguém, encontrará fácil acolhida na mídia. O desmentido, porém, será ignorado ou terá tratamento secundário.
Autoridades policiais, "leões" tributários e mesmo promotores têm deitado e rolado na divulgação de supostos atos ilegais por homens públicos e cidadãos comuns. O estrépito que os acolhe desrespeita direitos constitucionais. Neste novo "Terror" a câmera, o microfone e a manchete substituem a guilhotina. A notícia pode até ser verdadeira ao reproduzir corretamente versões mentirosas de autoria identificada. Ainda assim, a imprudência consiste em divulgar a versão sem conferir se tem um mínimo de verdade. O atingido que se defenda em anos de processos judiciais intermináveis.
Na história recente de São Paulo, o delegado disse que o dono da escola praticou atos condenáveis. A vida do dono está destruída ainda que termine inocentado. O procurador-geral baseia-se em lista eventualmente "plantada" por notório contraventor e todos (culpados e inocentes) são expostos ao famoso "clamor público" (o mesmo que salvou Barrabás).
A busca da fama instantânea sob as luzes da televisão tem provocado reações no mundo jurídico, ante a ofensa reiterada a direitos e garantias individuais, que a Constituição afirma serem invioláveis. Uma dessas reações, contra a qual é preciso lutar energicamente, consiste em criar mecanismos restritivos da liberdade de informação. Para evitar o sacrifício da liberdade serão necessárias doses maciças de visão crítica sem concessão, mas sob a ótica da severa responsabilidade informativa. Será uma forma de preservar a democracia.

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